Nota Introdutória:
Novo degrau rumo ao topo das cilindradas mais altas. Depois das 50, das 125 e das 250 vamos fazer uma breve paragem nas 300. Será apenas uma crónica, antes de um novo aumento da cilindrada. Terá ainda a particularidade de a estrela deste número ser uma pura moto de enduro, mas matriculada, tal como todas as motos que vou apresentando. É uma regra a manter.
A Áustria é um país lindíssimo, muito montanhoso, com imensas florestas, vales e lagos e uma grande tradição nas duas rodas, sendo que parte da “culpa” é desta marca, mas vamos contar um pouco da história para perceber como tudo começou…
A KTM foi fundada em 1934 por Hans Trunkenpolz, que lançou uma pequena loja na cidade austríaca de Mattighofen (a meia hora de Salzburgo). Batizou a sua loja com o nome de Kraftfahrzeuge Trunkenpolz Mattighofen (KTM) em que Kraftfahrzeuge significa veículos a motor, Trunkenpolz, o seu apelido e Mattighofen, a cidade de origem e onde ainda continua nos dias de hoje a sede.
Foi mais um dos países devastados pela segunda guerra mundial e esse acontecimento teve uma importância determinante para que a KTM decidisse começar a construir as suas próprias motos, o que veio a ocorrer a partir de 1953, em quantidades completamente artesanais e com o apoio de outros fabricantes, nomeadamente ao nível do motor.
O passo fundamental ocorre dois anos mais tarde quando entra no capital da pequena KTM o empresário Ernst Kronreif, que adquire parte da empresa, sendo o nome alterado para Kronreif Trunkenpolz Mattighofen, o que não obrigou a alterar a sigla que já existia! Boa jogada de marketing!
A marca foi crescendo ao seu ritmo normal, longe do fulgor dos fabricantes japoneses, mas apostando sempre na exportação, inclusive para o nosso país onde vão aparecendo, por exemplo, KTM Ponny ou Komet, com motor Sachs, nas décadas de 60 e 70.
Desde muito cedo que a marca se caraterizava por uma certa paixão às motos fora de estrada, mas o sucesso só surgiu mesmo quando, no final da década de 60, se associou a John Penton e teve início a exportação para os Estados Unidos. O sucesso foi imparável, sendo que mesmo na atualidade este mercado é o seu número um no que ao todo-o-terreno diz respeito!
Logo no início da década de 70 começam a construir motores de produção própria e depois, fruto de um génio criativo irrequieto, a lançar novas ideias, como por exemplo um radiador numa 125 cc, travão de disco em ambas as rodas ou embraiagens hidráulicas. Invenções que depois se tornaram standards na indústria das duas rodas!
Na década de 80 nem tudo foram rosas, seja por problemas de gestão, concorrência, dívidas… a marca esteve praticamente falida, mas é também nessa altura que cria o primeiro motor a 2 tempos de mais de 250 cc, dedicado ao todo terreno, que antecedeu a escolhida para este número.
Corria o ano de 1986 quando os International Six Days Enduro (ISDE) permitiram que na categoria livre fosse possível aumentar a cilindrada das 250 cc e foi o que os austríacos decidiram fazer. Com um pequeno aumento de cilindrada “nasceu” um motor com 273 cc, que veio a ser chamado 300, mas como o sucesso não foi o esperado o projeto foi encerrado no ano seguinte.
Em 1990 a ideia veio de novo à tona, mas desta vez com mais empenho: novo aumento de cilindrada e agora o resultado foi um motor com 297 cc, muito diferente do que existia em 1987, com uma clara diferenciação do de 250 cc, mas sem os exageros muito comuns noutras motos em que a potência era de tal ordem que poucos as conseguiam explorar e não ficavam rapidamente de rastos. A própria KTM chegou a ter, por exemplo, um motor de 440 cc!
Ainda assim, a 250 era a estrela da companhia, o líder de vendas, cabendo à 300 um papel secundário, mesmo enquanto moto excelente para o enduro mais técnico. Parte da “culpa” tinha a ver com a eletrónica da moto. Depois da falência da Motoplat (fornecedora, por exemplo, da Sachs durante muitos anos) a escolha recaiu sobre a SEM, mas nem sempre resultava bem na 300, como vamos ver de seguida.
N.º 14: KTM EXC 300
O bonito exemplar que vamos analisar (obrigado M. Silva pela amizade, disponibilidade e simpatia) é de 1995 e numa decoração que, a dada altura, foi bastante popular. Ao contrário do que alguns possam pensar, nem sempre as KTM foram cor de laranja, existindo muitas outras cores, caso desta conjugação branco/amarelo/arroxeado ou desta verde e branco de 1992, com quadro vermelho, muito rara.
Basta olhar para a moto para ver que está ainda bastante “direitinha” e que mesmo algumas das alterações que tem, como as proteções de mãos ou o depósito ligeiramente maior, com 11 litros em vez dos habituais 9, servem para confirmar o óbvio: o seu dono continua a fazer uso dela! É uma pura moto de enduro e o seu habitat natural é esse, mesmo que evitando uma utilização mais radical, não se nega a nada, incluindo alguns enduros para clássicas!
O motor é um 300 à moda antiga: bastante bruto em todos os regimes e até algo brusco na transição de baixas para médias e desta para altas, mas dá imenso gosto de conduzir (ou será pilotar?) até porque todo o conjunto é muito leve e ágil. Escusado será dizer que fazendo uso dos muitos cv disponíveis os consumos disparam na mesma proporção e se for conduzida, por exemplo, num piso arenoso o depósito vai-se num instante! Haja físico para aguentar!
Já em baixas, para um uso mais radical ou em percursos lentos e técnicos, o motor é excelente e a embraiagem ajuda! Uma trepadora nata, em que com apenas um “cheirinho” de acelerador é possível subir praticamente tudo! Os limites estão mais nas mãos de quem a conduz do que propriamente na moto! Quase que se sente o pistão a subir e descer no cilindro enquanto a roda traseira vai gerando tração e progredindo. É uma sensação ótima!
Para uma quase “trintona” consegue ser bastante atual em vários aspetos: tem um bom quadro, travões à altura e suspensões de qualidade, incluindo Ohlins atrás e umas grossas Marzocchi Magnum de 50 mm, mas ainda convencionais. Olhando com mais atenção vemos que o amortecedor traseiro ainda não é de ação direta (vulgo pds) que só surgiu cerca de 3 anos mais tarde e é uma imagem de marca, sendo adorado por uns e odiado por outros!
O “estranho” descanso (para os mais distraídos vejam bem a foto) era um descanso do tipo central numa pura moto de enduro! Esteticamente fica feio, mas resulta! Ainda assim, a marca acabou por o abandonar e render-se ao tradicional descanso lateral, até para poupar no peso, que continua a ser uma obsessão da marca e ainda bem!
Está aqui uma moto que é verdadeiramente “Ready to Race” e tudo foi pensado para simplificar a vida ao seu condutor, fosse ele um mundialista ou um simples praticante de enduro que apenas anda aos fins de semana. Aliás, muitos dos técnicos da empresa são eles próprios praticantes das modalidades das motos que vendem. Isto chama-se paixão!
Recordam-se de há pouco ter mencionado a parte eletrónica fornecida pela SEM? Pois, está aqui um dos pontos fracos da moto! Mesmo com a carburação o melhor “resolvida” possível, acaba por isolar a vela com relativa facilidade! Nem tem a ver com quantidade de óleo! Quase que nem se pode dizer que é defeito, mas antes feitio! Esse “problema” foi depois resolvido nos exemplares produzidos de 1997 em diante em que se mudou o fornecedor para a japonesa Kokusan.
A marca decidiu explorar o filão 300 e foi um pouco mais longe ainda nessa década: lançou uma 360 e até uma 380. Só tive oportunidade de experimentar esta última e admito que não fiquei fã da mesma! Ao fim de 10 minutos os meus braços devem ter alongado 2 ou 3 cm cada um! Não obrigado! A 300 faz praticamente tudo tão bem e com menos fadiga que é algo sempre muito importante, sobretudo quando a forma física ou a técnica não ajudam.
Não fui o único a pensar assim! A própria marca decidiu, em 2000, apostar mais na 300 e esquecer de vez as cilindradas a 2 tempos acima disso, mas essa história fica para outra vez porque a nossa fronteira temporal continua a ser o milénio passado!
O dono desta espetacular 300 é um felizardo já que detém também, da mesma altura, uma 400, com motorização a 4 tempos. A conhecida LC4 (Liquid Cooled 4 tempos) tem semelhanças com a 300, mas é uma moto bastante diferente, o que não invalida que não seja também muito interessante, mas de uma forma ligeiramente distinta, incluindo ao nível do peso real e percecionado.
Logo para começar tem o pedal de arranque do lado errado (à esquerda) e depois a verdade é que motos de enduro a 4 tempos sem motor de arranque podem ser um problema, sobretudo se o motor estiver muito quente ou o motor estiver “afogado” com gasolina, por exemplo em caso de uma pequena queda. Não tenho saudades desses tempos e digo sempre que motos de enduro a 4 tempos sem “botão maravilha” não as quero para mim!
Por curiosidade, tomando como referência o ano de 1995, segundo uma publicação da época a EX-C 300 custava 1198 contos e declarava um peso de 108 kg. A EX-C 400 custava 1335 contos, com um peso declarado de 122 kg.
Porém, sem querer entrar na “guerra” entre motores a 2 e a 4 tempos, que existe há décadas, a verdade é que o ciclo a 4 tempos consome menos gasolina, (e óleo de mistura), consegue colocar a potência na roda traseira de forma mais suave e, por regra, alonga mais, fruto da própria arquitetura do motor, sendo que a escolha entre um ciclo e o outro é algo de muito pessoal. O ideal, para os apreciadores do enduro e se existirem condições económicas para tal, é ter uma de cada! Não custa pedir!
250 ou 300 cc?
Já falámos da guerrinha entre as 2 e as 4 tempos em que não existem vencedores ou vencidos, mas apenas muito por onde escolher. Ainda por cima, nesta década, as marcas japonesas começavam a abandonar as motorizações as 2 tempos, tirando no motocross e apostando nas 4 tempos, caso das Honda XR, Suzuki DRZ, Kawasaki KLX e, no final da década, com a chegada da revolucionária Yamaha YZ 400 4 tempos tudo mudou e o mercado a 2 tempos tornou-se gradualmente quase um feudo da KTM, ajudado pelas 4 tempos RFS (Race Four Strokes) da marca.
Também a guerrinha entre sistemas com amortecimento traseiro de ação direta (pds) ou por bielas (como a 300 da nossa crónica) se foi prolongando no tempo e mesmo na atualidade os dois sistemas coexistem, sendo que o pds está melhor que nunca, sendo sempre mais leve e simples, mas com uma resposta mais direta, o que não é do agrado de todos.
Falta-nos agora falar da guerrinha entre a 250 e a 300 da KTM a 2 tempos, sempre na perspetiva do utilizador mais de fim de semana em que o fator competição não entra na equação. Afinal de contas, em muitas provas eram e são de categorias diferentes, mas para o utilizador amador isso é irrelevante e o que interessa é o que cada uma lhe pode oferecer para o seu tipo de utilização e gosto pessoal!
Começo por assumir que sou suspeito. Já tive as duas cilindradas e gosto de ambas, mas de maneiras diferentes, sendo que as duas me fazem felizes, mas eu sou bastante “fácil” e até uma 125 me dá muitas alegrias, apesar de me obrigar a uma maior concentração para ter o motor a “gritar” lá bem em cima! Pena não ter 20 anos outra vez!
Já vimos que, para a marca, tudo começou pela 250 e só depois pela 300. Além disso, durante vários anos, a 300 era pouco mais que uma sucedânea da 250 e pouco mais valor acrescentado tinha. Aliás, o até o Manual de Utilizador era o mesmo, o que nos levanta a eterna dúvida: farão assim tanta diferença os menos de 50 cc que as separavam e continuam a separar?
A diferença de preço entre as duas sempre existiu. Por exemplo, em 1995 a EX-C 250 custava 1179 contos e a EX-C 300 custava 1198 contos. Mesmo nos anos seguintes o diferencial maior ou menor, manteve-se sendo que, em termos de custos de produção, imagino eu, que seja exatamente a mesma coisa e no mercado de usados a 300 acaba por valer mais alguma coisa!
Mesmo a olho nu são praticamente iguais! Se retirarmos os respetivos autocolantes e sem as colocarmos em funcionamento torna-se até difícil distinguir uma da outra. Agora quando se coloca o motor a trabalhar o “cantar” já é diferente, mas é sobretudo em andamento que as diferenças se manifestam e de que maneira!
Diria que sem me preocupar com mapas de binário e potência, a principal diferença é em termos de sensações e a 250 faz praticamente o mesmo que a 300 e vice-versa, mesmo que de maneiras ligeiramente diferentes, não considerando as hipóteses de “customização” ao nível de carburação, escape e respetiva válvula, colaça…
A 250 é mais adequada para quem gosta de levar o motor mais alegre (on pipe) nas rotações, tem uma condução mais agressiva, usa mais a embraiagem e procura menos inércia, parecendo a moto mais leve e até brincalhona. Perfeita para terrenos mais abertos e rápidos.
Já a 300, na minha perspetiva, é para quem prefere um enduro mais lento e técnico em que o motor até parece mais pachorrento, mas ainda com mais binário e logo muito cedo. Consegue até parecer um pouco mais pesada, mas é a minha escolha pessoal e a best-seller da marca por esse mundo fora. Chamam-lhe moto a 3 tempos por algum motivo!
Um especial agradecimento à KTM por continuar a apostar nos motores a 2 tempos. Estavam praticamente condenados no virar do milénio e foram os austríacos que com um sistema de injeção (vulgo TPI) conseguiram dar uma nova vida a este tipo de motorizações nas modalidades de enduro, cross country e até motocross. Veremos até onde será possível evoluírem, sendo que a marca já anda a investir nas elétricas há vários anos. O próprio sistema TPI levou quase 10 anos a chegar ao mercado!
As fontes de informação para este modelo são muitas e existem algumas em português, tal como o seu número de fãs que dizem Kem Tem Merece e os seus detratores que preferem Kem Tem Muda!
ClubeKTMPortugal: Muitos anos sobre a forma de fórum, agora apenas na rede social Facebook;
KTMTalk: Talvez o maior recurso à escala global sobre a marca. Está lá tudo;
Dirtbikemagazine: História da EXC 300, desde o princípio até hoje;
Dirtbikechannel: Canal muito popular. Este vídeo é um bom comparativo 250 vs 300cc;
KTMForum.co.uk: Fórum inglês sobre a marca com muita informação;
EnduroPortugal: Fórum nacional com muita informação sobre enduro, incluindo a KTM;
2y4t: Fórum espanhol com muita informação sobre enduro e motocross.
Para o próximo número vamos subir novamente de cilindrada. Peguem na vossa bagagem porque vamos regressar ao Japão. A moto que vamos analisar é a 4 tempos, tem apenas um cilindro e ainda hoje é muito popular em Portugal, pena nunca ter tido arranque elétrico, uma falha imperdoável! Até sexta-feira!
Texto: Pedro Pereira