Nota Introdutória:
Como previsto, a semana passada abordámos uma das mais gloriosas motos de aventura que existiu, a magnífica Africa Twin 750. Vamos fechar a categoria das 750 cc com a sua adversária mais direta, dentro e fora das pistas! Uma moto que também marcou uma ou várias gerações e que ficou para a história pelo seu palmarés desportivo, pelas inovações técnicas e por representar um nome que ainda hoje faz sonhar muitos de nós, incluindo eu próprio: Ténéré!
Na primeira metade da década de 80 a Yamaha já estava perfeitamente “integrada” na europa, nomeadamente em França, onde a XT 500 continuava a vender estrondosamente bem, fruto da sua versatilidade e, acima de tudo, do seu rico historial, em especial as vitórias no Paris-Dakar. Além disso, o facto de ter um importador muito ativo e com um profundo conhecimento do mercado ajudava ainda mais à sua implantação em toda a Europa.
Assim, a Yamaha esteve mais afastada das grandes competições no deserto, apoiando mais particulares e menos equipas verdadeiramente oficiais o que acabou por se revelar um erro que levou muito tempo a ser corrigido. De tal forma que depois da vitória no Dakar em 1980 foi necessário esperar uns dolorosos 11 anos para a marca dos diapasões poder voltar a elevar o cetro da vitória no Lago Rosa!
Pode afirmar-se hoje, com alguma margem de certeza, que a “teimosia nipónica” em continuar a apostar em motores monocilíndricos lhe custou caro! Até a Honda levou algum tempo a avançar para um motor com 2 cilindros, sendo que a BMW foi visionária e a primeira a perceber que com as regras do Dakar importava ter motos cada vez mais potentes e já não apenas ágeis e fiáveis.
Ainda na senda dos monocilíndricos, no ano de 1983, a Yamaha lança a sua primeira XT 600 com a designação Ténéré. O nome em linguagem tuaregue, significa “deserto” e, tal como o Sahara, a palavra árabe para “deserto”, a palavra é usada para se referir à região. Abrange uma vasta planície de areia estendendo-se desde o nordeste do Níger ao oeste do Chade, ocupando uma área gigante de 400.000 km².
A moto era bastante avançada (versão muito melhorada da XT 550), tinha um depósito gigante com mais de 30 litros e a sua aceitação no mercado foi excelente, sendo que ainda hoje é muito apreciada, mas apesar de várias tentativas sucessivas a vitória no Dakar teimava em não chegar! Em 1986 ganha o desejado arranque elétrico e torna-se ainda mais apetecível.
No ano seguinte, em 1987, o departamento de competição da marca, no Japão, começou a trabalhar numa nova moto de fábrica para o Rally de 1988. A “0W93” ou “YZE750 Ténéré” alimentado por um motor líquido refrigerado 750cc cilindro único de cinco válvulas. Jean-Claude Olivier, futuro presidente da Yamaha Motor France S.A., trouxe ainda para a equipa oficial da marca um jovem e talentoso piloto chamado Peterhansel, mas a vitória essa não chegava!
Em 1988 a marca lança uma “nova” versão a que chamou XT 600Z Ténéré com um aspeto muito mais imponente, especialmente marcado pelos dois faróis dianteiros e já com disco de travão traseiro e ainda com refrigeração a ar. O “enguiço” no Paris-Dakar teimava em continuar! As vendas eram favoráveis, mas a vitória na mítica prova teimava em escapar, ano após ano, mas a marca Iwata não dormia e o bicilíndrico já estava na forja!
Foi preciso chegar a 1989 para a marca apresentar, com pompa e circunstância, a sua novíssima Yamaha XTZ750 Super Ténéré, equipada com um novíssimo bicilíndrico paralelo (recordam-se que a semana passada vimos que a opção da Honda fora pela arquitetura em V). Além disso, vinha equipada com 2 discos de travão dianteiros (nunca nenhuma trail o tinha feito antes) e um enorme depósito de combustível com capacidade para 26 litros. Aliás, a apresentação ocorreu ainda em 1988, no Salão de Paris, mas as vendas começaram no ano seguinte.
Estava aqui a base para a marca voltar a lutar pela vitória no Dakar! Não podia ser de outra forma! A Yamaha tinha que voltar às vitórias e para isso era necessário ter mesmo a melhor equipa, as melhores motos, a melhor estratégia e o maior orçamento!
Nesse mesmo ano de 1989 a marca já corre com um protótipo do novíssimo biclíndrico, o YZE750 Hold 0W94, mas ainda não é desta vez que o feitiço se consegue quebrar e a Yamaha tem que se contentar em não ganhar! Aliás, nem mesmo no ano seguinte em que as motos de fábricas são equipadas com um motor de 802cc (YZE750T Super Ténéré), mas vamos agora focar-nos na moto eleita desta crónica e esquecer um pouco o Paris-Dakar e a competição no global, apesar do seu lugar na história. Este vídeo ajuda:
N.º 30: Yamaha XTZ 750 Super Ténéré
Depois da apresentação no outono de 1988, a XTZ começou a ser comercializada no início do ano seguinte e mudou para sempre a forma como se encaravam e viviam as motos de aventura com uma versatilidade e dualidade que não se conhecia, mesmo não tendo o caráter inovador e pioneiro da sua antecessora XT 500.
A moto era um verdadeiro colosso e em todos os sentidos! Com um selim a 865 mm e altura livre ao solo de 240 mm, um peso a cheio superior a 230 kg, um depósito enorme com 26 litros de capacidade, suspensões reguláveis, um pneu dianteiro de 90/90 21 e um 140/80 17 atrás (sim, vinha com jante de 17 polegadas) tinha o seu grande destaque noutro ponto: o motor!
O bicilíndrico paralelo de 749 cc, com dupla árvore de cames, relação curso/diâmetro de 87x63mm e 5 válvulas por cilindro (o padrão eram quatro) resultava numa moto que era um estrondo! Debitava cerca de 70 cv às 7.500 rpm e 68 nm às 6750 rpm! Valores assombrosos para uma moto de perfil aventureiro! Era ela a rainha na sua classe e o seu motor mais parecia um motor de corridas!
Aliás, o sistema de 5 válvulas já tinha sido apresentado em 1984 pela Yamaha na FZ750 (mais tarde o tetracilíndrico chegou a correr no Dakar), aquela que foi a primeira superdesportiva da marca! A nova tecnologia a que chamaram Genesis melhorava nitidamente a resposta do motor, sobretudo em rotações mais elevadas e dava um caráter único à nova XTZ, além de performances puras que pulverizavam a concorrência, nomeadamente a sua principal adversária, a Africa Twin 750.
Vamos agora focar-nos no espetacular exemplar da crónica desta semana. É um modelo da colheita de 1993 e tem a particularidade de ser uma versão mais apimentada” e cobiçada que o habitual, sendo que podemos afirmar que é uma espécie de versão “competição cliente”, incluindo a decoração da equipa Sonauto.
Novo agradecimento ao O. Sousa por mais esta moto marcante e que ganhou um lugar na história da marca. Este exemplar está num estado francamente bom, o que não significa que seja de concurso, até porque há aqui e acolá umas normais marcas de uso. Também os coletores estão algo oxidados (muito comum) e mereciam algum carinho, mas para que gosta de motos sobretudo para as usar… está perfeito assim!
Se olharmos para a quilometragem vamos ver cerca de 45.000 km o que não é nada de especial para o motor, desde que haja os devidos cuidados. O painel de instrumentos é bastante minimalista na informação e quase não se distingue das versões mais normais, tipo a XTZ 600, mas há algo que merece destaque: o velocímetro a marcar 220 km/h! Pode parecer um exagero, mas o facto é que a velocidade de ponta real eram cerca de 192 km/h!
Uma verdadeira barbaridade à época para uma trail e que mesmo na atualidade merece respeito! Com mais uma relação (a caixa é algo ruidosa) iria sem dificuldade aos 200 km/h, desde que o restante conjunto o permitisse, incluindo os pneus que quanto mais estradistas… melhor o comportamento em asfalto e vice-versa!
Vamos ser verdadeiros! A moto não é difícil de se conduzir e brilha no asfalto, mais até que fora da estrada, mas depende muito de quem a conduz! A posição de condução é boa (apesar do depósito muito largo), inclusive para se andar de pé, o selim é espaçoso e garante algum conforto, mas se quisermos e formos capazes de andar depressa há que ter atenção, seja no asfalto ou fora dele!
No TT sente-se bastante o peso, tal como a elevada altura ao solo, as suspensões apenas suficientes, além de que o motor gosta mais dos médios regimes e aí as velocidades atingidas começam a ser muito elevadas, perfeitas para um estradão no Alentejo, mas existem melhores opções, mesmo dentro da marca. Uma XTZ Ténéré 660 da mesma época para TT talvez seja melhor escolha, sendo mais leve, fácil e potente qb.
No alcatrão a moto é um avião, mas os travões (duplo disco de 245 mm à frente e disco simples de 236 mm atrás) tornam-se facilmente escassos e são pouco mordazes, a proteção aerodinâmica é insuficiente, os consumos conseguem tornar-se pornográficos e mesmo o quadro não ajuda muito a uma condução mais dinâmica! Talvez seja melhor opção como roladora nata, com velocidades de cruzeiro a rondar os limites legais e os consumos até se tornam aceitáveis.
Comparativamente à sua principal rival, tomando como referência o ano de 1994, a diferença de preço até lhe era bastante favorável: a XTZ custava 1520 contos e AT 1780 contos! Porém, é inegável que na atualidade a Africa Twin tem conseguido manter melhor o seu valor, a que não é alheio o facto de ter estado muito mais tempo no mercado, apesar de ter tido menos declinações que a Ténéré.
Quanto à questão da fiabilidade, não podemos escamotear os mais de 30 anos do projeto e algo que já referimos por diversas vezes e que é complexo de avaliar: a forma como foi tratada pelos proprietários anteriores, sendo que o total de km’s é apenas um indicador e tem um valor relativo.
O motor, regra geral, é bastante fiável e robusto, mas a moto é muito mais que isso, veja-se o exemplo da fraqueza crónica do amortecedor traseiro, mas existem empresas especializadas na sua reparação, a ponto de ficar melhor que novo! Os reguladores/retificadores de corrente são outro problema comum, sobretudo nos primeiros anos.
Além disso, convém ter especial atenção ao nível de óleo (procedimento específico para verificação) e ao seu eventual consumo, nomeadamente em motores que rodaram muito em rotações mais elevadas. Já agora, a afinação de válvulas consta que é algo complexa (e são 10, ou seja, 5 por cada cilindro), mas em condições normais apenas deve ser feita, de acordo com o manual, a cada 42.000 km! Excelente!
Evolução da Ténéré até final do milénio
As vendas no ano de 1989 não foram nada más! Só em França, por exemplo, foram vendidas 3115 unidades, valor que nunca mais chegou a atingir e a vitória no Dakar ainda nem sequer tinha chegado. Durante a sua produção, que se prolongou até 1996 (certamente há exemplares matriculados mais tarde), a marca nunca atingiu este número num mercado particularmente importante para a marca e há várias explicações, mas há uma óbvia:
A marca nunca mais investiu de verdade nesta moto, nem mesmo com a vitória no Paris-Dakar que ocorreu em 1991 e em que competiram 8 pilotos da Sonauto e era quase impossível a marca não ganhar, tal o investimento e a qualidade dos seus pilotos, sendo que a vitória sorriu ao que veio a ser chamado “Sr. Dakar”. Nada mais, nada menos que Peterhansel, que venceu nessa década em 6 edições sempre com a Yamaha, a que acresce ainda uma vitória de Orioli em 1996, também em Yamaha, embora já com motores de 850 cc, mas essa história fica para outra vez…
Até ao final da sua produção, em 1996, apenas se foram alterando grafismos e corrigindo algumas falhas mais ou menos graves (caso dos retificadores de corrente, tipo 47X, oriundos da RD500, trocados pelos 5A8s, usados pela Yamaha TR1, in 1992) ou melhorias na ergonomia, como ocorreu ao nível dos poisa-pés do pendura.
Ou seja, a marca deixou simplesmente de investir no modelo, direcionando-se para outros tipos de motos. As vendas foram definhando a ponto de se tornarem completamente residuais e o modelo deixou o mercado de forma inglória, mas o genial motor de 2 cilindros em linha não foi abandonado e ainda bem!
Nessa mesma década, logo a partir de 1991, tendo por base os motores usados na XTZ 750, mas já com 850 cc, a marca lançou a espetacular e irreverente TDM 850, depois uma segunda geração em 1996, já com novas inovações e ainda um modelo mais radical com a mesma motorização, a TRX 850! Algo rara no nosso país, mas cheia de atributos e um comportamento de desportiva! Foi produzida entre 1995 e 2000 e mesmo hoje tem uma presença fenomenal. Estive quase a comprar uma, mas o meu lado racional não me deixou!
Quanto ao nome Ténéré esse a Yamaha não deixou cair no esquecimento e ainda bem que o fez! Era uma espécie de traição, mas felizmente tornou-se numa tradição nas motos da marca com caraterísticas mais aventureiras e de uso mais dual e que ainda hoje são muito apreciadas, basta ver o exemplo da popularíssima Yamaha Ténéré 700 que continua a fazer felizes milhares de motociclistas ávidos de aventura.
Por outro lado, a Yamaha não se esquecia dos monocilíndricos e ainda em 91 lançou outro sucesso no mercado e que em nada ajudou à carreira da XTZ 750: surgiu à venda a XTZ 660 Ténéré com 5 válvulas por cilindro e, pela primeira vez, com refrigeração líquida! Uma moto que veio ajudar a renovar o interessa nas monocilíndricas, bem mais leves e exigentes que as pluricilíndricas e igualmente divertidas e menos caras!
Por exemplo, em 1992, uma XTZ 660 custava 994 contos e a 750 custava 1258 contos! Além disso, a 660 já tinha um bom desempenho com cerca de 46 cv às 6.000 rpm e um binário incrível de 56 nm, logo às 5.000 rpm! Também pesava “apenas” 195 kg, já com o depósito de 20 litros cheio! Ou seja, vinha nitidamente canibalizar as vendas da sua irmã mais velha, oferecendo muito, mas por um preço bem mais tentador!
Como se não bastasse, em 1994 a marca atualizou a XTZ 660 com um duplo farolim dianteiro, praticamente igual ao da XTZ 750. Ou seja, era a própria marca a gerar a confusão e que parecia querer dar mais valor à 660 que à 750.
Ambas deixaram de ser produzidas em 1996, mas é curioso que a 660 Ténéré voltou muito mais tarde, em 2008, mas essa história já fica para outra vez. Nesse interregno o motor foi “aproveitado” para a XT 660, dona de uma popularidade enorme também no nosso país, sendo muito vulgar, fiável e divertida. Mesmo hoje uma boa escolha para um moto racional e descomplicada.
Para acabar e respondendo a uma questão que é comum abordar, se me perguntarem entre a XTZ 750 e a Africa Twin 750 qual considero melhor escolha, direi sempre do estado geral e que depende muito do uso que lhe querem dar e dou um exemplo prático. Se for para um Lés-a-Lés on-road, pois que venha a XTZ 750. Se for para um Lés-a-Lés off-road a minha escolha já recai na Africa Twin 750!
A maior parte das fontes de informação não são portuguesas, mas há uma exceção: o Clube XT Portugal. Fora esse bom exemplo nacional, a maioria da oferta sobre o modelo é noutras línguas, apresentando-se agora alguns pontos de pesquisa.
ClubeXTPortugal: fórum nacional para toda a família XT;
MCNews: história da Yamaha Ténéré, nas suas diferentes declinações;
Misfitmade: análise muito detalhada ao modelo;
Parisdakar.it: toda a história da Yamaha no Dakar, com destaque para a Ténéré;
Motocultura.com: site brasileiro com imensa informação da Ténéré, incluindo fotos;
Tenere.co.uk: fórum repleto de informação, sobre a 600, 660 e 750 Ténéré;
Advrider: fórum especializado em motos de aventura, mais de 90 páginas sobre a XTZ 750;
Para o próximo número vamos subir de cilindrada e regressar à europa! Vamos, finalmente, abordar uma marca que também já é centenária e que tem uma grande responsabilidade no lançamento e popularidade nas motos com um caráter dual, capazes de nos dar alegrias no asfalto e quando ele acaba, além de ter feito furor no rally Paris-Dakar! Não é difícil adivinhar a que marca me refiro! Até sexta-feira!
Texto: Pedro Pereira