Nota Introdutória:
Ainda que com alguma mágoa da minha parte vamos fechar o universo das 50 cc. Sou o primeiro a admitir que muito ficou por abordar, ao nível das mini-motos (nacionais ou não), da competição (on e off-road), das scooters, dos tricarros, de várias marcas, mas tenho que me manter fiel ao modelo que defini inicialmente. Depois da vedeta desta semana vamos subir de cilindrada. Talvez, um dia, seja possível voltar às 50 cc, verdadeira essência da produção nacional.
Esta semana, em jeito de despedida, vamos centrar a nossa análise em mais um verdadeiro clássico da produção nacional, sendo que sobre a marca Casal já muito foi dito no nosso número 2, quando foi feita a abordagem da Casal RZ 50.
Ainda assim, aproveito a oportunidade para dar o merecido destaque a um artigo da Motojornal, publicado no seu número 1025 (julho de 1997), aproveitando o trabalho do blog Horta das Vespas pela reprodução. Trata-se de uma fantástica entrevista, conduzida pelo Mário Figueiras (atualmente ligado ao mundo das motos, mas de outra forma) e com fotos de Rogério Sarzedo (continua ligado ao mundo da fotografia), que vale a pena conhecer.
É entrevistado João Francisco do Casal, ou seja, o homem que esteve na génese do maior fabricante nacional de veículos de duas rodas e não só. Esta entrevista é um verdadeiro documento histórico, na mais pura aceção do termo e tem lá uma foto da Casal Boss ou K168. Destaco uma frase de João do Casal que me marcou profundamente: “O meu trabalho era fazer uma fábrica de homens e não uma fábrica de motores”.
Caso as imagens sejam muito pequenas para a leitura, basta fazer zoom ao ecrã e a leitura torna-se mais fácil. Vale mesmo a pena ler, até a parte da mágoa com que a empresa foi tratada!
N.º 6: Casal Boss
O nome Boss (que podemos traduzir por Patrão/Patroa, Chefe, Superior, Comandante, Líder…) ficou gravado na memória coletiva de todos nós sempre que se fala de duas rodas nacionais. As pessoas até podem não saber qual o fabricante e desconhecerem que muitas delas foram construídas pela “afiliada” Fundador (em Sangalhos), mas o termo Boss é quase uma instituição e a sua fama, como a do Constantino, já vem de longe!
Ao que consta, tudo começou em inícios da década de 70. A Casal procurava uma forma de conseguir fazer frente ao “best-seller” SiS Sachs Minor que vendia como pãezinhos quentes no nosso mercado. Por outro lado, as vendas da scooter Casal Carina (Modelo S170, cada vez mais cobiçada na atualidade) não estavam a correr como o planeado e existiam milhares de tubos de aço de 62×3 mm, destinados à construção de quadros, sem qualquer utilidade.
Assim, onde alguns viam duas ameaças foi possível ver mais longe e encontrar uma oportunidade… e que oportunidade! A Boss rapidamente se tornou uma Líder e o seu sucesso de vendas prolongou-se até à década de 90, continuando a ser incrivelmente popular nos dias de hoje! Aliás, já ouvi várias pessoas afirmar que não se importavam de comprar uma nova… se existisse!
A versão inicial (muitíssimo apreciada) aproveitava esses tubos de aço para o quadro e até para o depósito de combustível que também chegou a ser debaixo do selim. Tinha capacidade apenas para uma pessoa e vinha equipada com um motor Casal de duas velocidades, coexistindo modelos acionados por punho ou por pé. Considero este último mais eficaz e preciso, sendo que o de acionamento por punho acabou mesmo por ser descontinuado.
O preço era relativamente acessível, o tamanho e peso reduzidos e perfeita para Senhoras. A facilidade de condução enorme, tal como a economia de utilização e os consumidores rapidamente se “esqueceram” da Minor! Durante muitos anos a Boss representava, por excelência, o conceito de veículo de duas rodas utilitário e citadino: para ir trabalhar, para ir à escola, namorar ou simplesmente passear. Para muitos de nós foi o primeiro veículo e a entrada na mobilidade pessoal!
O conceito foi evoluindo gradualmente, mas resultava tão bem e o pequeno motor era tão robusto que a marca acabava por o vender às suas concorrentes, caso da Forvel (Força e Velocidade, cuja casa mãe era para as bandas de Cantanhede) e que tinha na sua VIP (1 e 2) e os tricarros como porta-estandarte, mas também outros modelos “próximos” à Boss, caso da Forvel Ovni.
Faço um destaque a este veículo em concreto por ser muito especial para mim: algures na década de 80 existia uma lá em casa e foi nele que fui obter a minha Licença de Condução de Velocípedes! O processo era simples: chegar à autarquia onde o zeloso funcionário apresentava uma série de cartolinas com vários sinais de trânsito. Lembro-me perfeitamente que confundi um deles e ele me ameaçou que se deixasse a motorizada ir abaixo no “exame” (tradicional volta ao pelourinho da vila) me chumbava!
Ia danado com ele e comigo mesmo! Pus o “penico” na cabeça, peguei na Forvel, pus o motor a trabalhar e logo no arranque acelerei bastante e com um “cheirinho” de embraiagem e a Ovni saiu disparada de roda da frente no ar! Parecia que ia rumo às estrelas!!!
O “examinador” ficava sempre à janela a assistir ao “exame”. Acabou por não me chumbar, mas deu-me uma reprimenda por considerar que aquela forma de condução não era adequada à via pública e tinha toda a razão, mas quando temos 16 anos o sangue “ferve-nos” com relativa facilidade! Ainda bem que crescemos!
A que agora aqui vos apresento, propriedade do N. Macieira a quem agradeço a disponibilidade, é um bonito exemplar de 1985 e foi alvo de um profundo trabalho de restauro com o auxílio do filho, o que torna esta Boss muito especial, até porque a sua recuperação fez parte de um trabalho escolar.
O resultado final é muito positivo (tal como a nota do jovem aluno) e está aqui uma Boss para umas belas voltinhas, mais ainda se o condutor for bastante leve, como é o caso. Aliás, é curioso que existem DUA em que há a indicação de que a lotação é apenas o condutor (é o caso desta) e outras exatamente iguais que mencionam o condutor e mais um passageiro. Só mesmo em Portugal!
Naturalmente que há ali detalhes que não são fiéis ao original (o escape, o local da gigante chapa de matrícula e o farol dianteiro são 3 bons exemplos), mas o resultado que ali apresenta é um regalo para a visão. Por opção foi adicionada uma cremalheira maior que a original, o que leva a que a utilização da primeira seja apenas para arrancar e situações muito concretas, por exemplo numa subida mais íngreme… ou com pendura!
Casal Boss= valor seguro
Todos nós sabemos que, na atualidade, está na moda tudo o que é vintage, clássico, antigo…. Que nos faz lembrar a nossa infância e juventude e as duas rodas não são exceção. De tal forma que se continua a assistir uma subida generalizada dos preços (podem chamar-lhe inflação, especulação, lei da oferta e da procura) e, na minha perspetiva, não vai ficar por aqui.
Podia passar o resto da crónica a mencionar exemplos de motos que, em pouco tempo, quase duplicaram o seu preço no mercado, mas não é isso que pretendo fazer. O destaque que quero dar à Boss é simplesmente no sentido de a considerar um “valor seguro” e por várias razões:
Ainda se encontra com relativa facilidade no mercado, muitas vezes em excelente estado (nomeadamente as mais recentes) e os preços de aquisição, procurando com alguma calma e paciência, são ainda suportáveis. Por outro lado, o processo de obtenção de matrícula do IMTT não costuma ser muito complexo. Acresce a tudo isso o facto de muita gente lhe ter um especial carinho o que a torna sempre bastante “vendável”, minimizando o risco de ser um negócio ruinoso.
Para os que procuram (ou procuravam quando ainda era comercializada nova) algo mais apimentado, mas ainda bastante simples, compacto e fácil de conduzir a Casal lembrou-se dessas pessoas (ao mesmo tempo que fazia frente, por exemplo, à Famel Z3) e lançou a Super Boss!
Era uma versão “revista e aumentada” da Boss sendo que a principal diferença era um motor completamente diferente! Em vez do “tradicional” M147 de duas velocidades e capaz de uns “estonteantes” 50 km/h (tinha menos de 3 CV stock) o motor agora era um M109, com cerca do dobro da potência e uma bem escalonada caixa de 4 velocidades, sendo que a velocidade máxima agora se cifrava por uns bem mais interessantes 80 km/h, tudo isto pesando apenas cerca de mais 10 kg!
Era a verdadeira loucura, passe a expressão! Uma singela e leve Boss com um motor a sério, capaz de ombrear com motos aparentemente mais poderosas e rápidas! Pode até ter-se perdido um pouco o conceito de utilitária, mas os ganhos eram tão evidentes que o sucesso foi grande e são hoje bastante apreciadas, mesmo se a travagem já tinha dificuldades em lidar com a dose de vitaminas que recebeu.
Ainda por cima, havia uma grande preocupação com os detalhes, bem visível, por exemplo, na pintura em preto (quadro, escape, amortecedores…) e dourado (nas jantes) que faziam da Super Boss um modelo muito apreciado, mesmo entre as elites estudantis, quase rivalizando com as produções nipónicas… por uma ínfima parte do preço!
Além disso, ao ser muito pequena, ter um quadro “aberto”, com reduzida altura do selim (para duas pessoas, pelo menos em teoria) e ao solo, era também muito apreciada pelo sexo feminino. Aliás, é comum de encontrar num qualquer encontro de “chapa amarela”, sendo conduzida também por mulheres.
Ainda me recordo de as ver nos entregadores de comida (pizza, frango no churrasco…) e andavam que se fartavam, mesmo com aquela caixa de carga enorme na traseira, isto muito antes de chegarem ao mercado os Uber Eats e Glovos desta vida! Também me recordo, na primeira pessoa, que não gostavam muito de chuva abundante, chegando ao ponto de parar por “isolar” a vela ou a bobine superior.
As Boss e/ou Super Boss Também foram largamente usadas pelos carteiros dos CTT (que me recorde, eram vermelhas) e fui informado que a própria PSP chegou a ter algumas nas suas esquadras, mas assumo que não me lembro de as ver. Falha minha.
No início da década de 90, já numa fase em que a Casal começava a atravessar sérias dificuldades, a marca ainda tentou lançar uma sucessora: a Bossini. Com uma “roupagem” muito mais atual e com arranque por pedal ou elétrico. Continuava a confiar no “vetusto” motor M147 e no seu inseparável (e não muito fiável) carburador Bing 17. Já veio tarde demais e o sucesso nunca foi o esperado. O fim aproximava-se a passos largos!
Uma vez mais, a informação sobre a Boss, nas suas diferentes declinações, é abundante e mesmo o material para recuperações/restauros também, exceto nas versões mais antigas ou em peças muito específicas. Uma das grandes ajudas em termos de peças e informação continua a ser o Carlos Martins da OldMoped, mas vamos a mais algumas referências.
Revista SóClássicas: n.º 91, dedicada a uma Boss em particular;
Clube Casaleiro: nova menção a este fórum especializado. Muita informação até para restauros;
Clube Casal Boss: grupo da rede social Facebook para os fãs do modelo;
Motasclassicas: a riqueza de imagens é incrível e uma verdadeira viagem no tempo. Várias marcas;
Motorizadas 50: o nome diz tudo. O nome Gustavo Pinto dispensa apresentações;
CasalBossPortugal. O nome do blog já ajuda. Merece ser atualizado.
Para o próximo número vamos mesmo subir de cilindrada. As motos conhecidas por “oitavo de litro” aguardam por nós! A primeira a ser escolhida é mais que uma moto, é um ícone e era para ser chamada Pato Donald, mas mudaram-lhe o nome e ainda bem! Esperem pela próxima sexta-feira!
Texto: Pedro Pereira