Nota Introdutória:
E cá continuamos a nossa viagem pelo tempo. Estamos na década de 70 do século XX. A ditadura vai ficar para trás, tal como a guerra colonial, respiram-se ventos de liberdade e, apesar das dificuldades, nota-se alguma melhoria económica em Portugal, bem como das condições de vida da generalidade dos portugueses e as motorizadas estão a atingir o seu auge.
Assim, vamos agora falar sobre um dos fabricantes nacionais que, tal como a Casal, sobre a qual já falámos na semana passada, foi um verdadeiro gigante industrial no nosso país, incluindo uma forte componente exportadora.
Refiro-me à Famel – FÁbrica de Produtos MEtálicos Lda, cuja sede ficava situada mesmo à beira da Nacional 1, em Águeda, mais precisamente em Mourisca do Vouga, sentido Sul-Norte e foi fruto, numa primeira fase, da visão e genialidade de três homens: João Simões Cunha, Augusto Valente de Almeida e Agnelo Simões Amaro, ainda na década de 40.
O acrónimo Famel ganhou depois um significado maroto e muito vernáculo, que não reproduzo na íntegra: F*º* A Moto É Linda! Curiosamente, o original não era esse. De entre os seus muitos lançamentos, ainda na década de 50, existiu a Famel Foguete (apreciem o lindíssimo exemplar de 1957, equipada com o motor JLO de 3 velocidades, propriedade do P.Pereira) e foi daí que nasceu: Fogo A Moto É Linda, depois generalizado com a chegada da XF-17, mas já lá vamos!
Uma das suas marcas distintivas é que a Famel usou uma grande diversidade de motores ao longo da sua existência, com o óbvio destaque para os motores Zundapp (cuja inscrição em grandes letras era facilmente visível na fachada da sede, virada para a N1). De outros fabricantes usou ainda as designações Kreidler, JLO, Villiers, Pachancho, DKW, mas também Casal, Minarelli ou Sachs.
Além disso, havia uma especial apetência (e o público adorava) pela indústria espacial e aeronáutica. Ciente desse facto a Famel lançou nomes sonantes como Laika, Sputnik, Mirage, Foguetão ou de aves como Periquito, Carriça ou Falcão… uma verdadeira loucura, tal como ritmo frenético de lançamentos que a marca fazia chegar ao mercado.
N.º 3: Famel XF-17
De entre a miríade de modelos que a Famel lançou, o de maior sucesso foi, indiscutivelmente, a XF-17. Lançada no mercado ainda na primeira metade da década de 70, tinha inegáveis semelhanças com a lindíssima Suzuki Stinger 125 (Wolf no Japão), nomeadamente o estilizado depósito de gasolina e o próprio logo da marca no mesmo, naturalmente com um Z e não com um S, e um perfil alongado, reforçado pela forma do próprio selim.
Na sua génese está um nome: José Ribeiro da Costa, vimaranense, natural de Serzedo, que pediu à Famel algo especial e o fabricante acedeu, depois do Sr. Costa assumir que comprava logo 200 exemplares, sendo o resultado o que se sabe!
Não teve o efeito da ida do homem à lua (ocorrido em 1969 e da qual ainda há quem duvide), mas foi um terramoto autêntico no mercado e havia uma lista de espera enorme, sobretudo nos primeiros anos de comercialização, mas era fácil de perceber porquê, tal como se entende o amor e paixão que ainda hoje consegue gerar nos seus proprietários e apreciadores.
Equipada com um motor Zundapp de 5 velocidades era/é um verdadeiro canhão! Muito leve e rápida (facilmente chegava aos 100 km/h reais) era também perigosa. Afinal de contas, os restantes componentes dificilmente acompanhavam o motor, já para não falar na abundância de material para lhe melhorar a performance, tornando-a ainda mais delicada, sobretudo a curvar (sentir a traseira a querer fugir é algo que muita gente ainda se recorda, eu incluído) e os travões são apenas abrandadores.
Aquela sobre a qual dedico em particular a minha atenção neste número é do P. Pereira e ele próprio é o primeiro a admitir que não está completamente original, mas isso não o preocupa porque está “como ele gosta” e isso é o mais importante!
É um bonito exemplar de inícios da década de 80’ e sendo uma SUPER era suposto ter o radiador, mas não tem e a explicação é simples: para lhe aumentar a performance, abdicou do radiador e optou por ficar apenas com refrigeração a ar, uma vez que há mais material para artilhar o motor e é menos uma fonte de problemas, como o risco de misturar água com óleo, tubagens…
Além disso, o carburador nada tem a ver com o Bing original, a parte elétrica foi substituída e o próprio escape é um de “rendimento”, algo ruidoso quando as rotações são mesmo altas, mas deixa o pequeno motor expressar-se melhor. Obviamente que o “bico de pato” é um adereço estético, mas resulta bem e “casa” com o guarda-lamas dianteiro em plástico. As jantes de 7 braços (também existiam com raios) são originais e dão um toque ainda mais desportivo à máquina.
Fora as “idiossincrasias”, de que já falámos (e da caixa nem sempre precisa, mas fácil de afinar, ou a necessitar de uma nova haste das mudanças, vulgo valader), era ainda conhecida por transmitir muita vibração, em especial “ao fundo das costas” e até algum formigueiro nas mãos. Também é vulgar o quadro criar fissuras, sendo comum a prática de lhe aplicar alguns reforços, exatamente por causa disso. O facto de o guiador ser de avanços dá-lhe um cariz mais desportivo e radical, mas não ajuda em nada no que à estabilidade diz respeito.
Ainda sobre este exemplar, o dono admite que a performance atual o torna algo perigoso em mãos menos experientes ou com o piso molhado e mesmo os Michelin Gazelle apenas mitigam um pouco o problema. Ele próprio só a usa em ocasiões especiais (por exemplo em passeios), mas admite que já lhe pregou alguns sustos e que tem lugar cativo na sua coleção.
Assumo, com alguma mágoa, que a XF-17 ficou (também) conhecida por, ao longo de várias décadas, ter ceifado muitas vidas. Naturalmente que não se pode culpar a máquina (como não se pode culpar uma arma), mas a tentação era grande, tal como a emoção e o risco e a tragédia estava, muitas vezes à espreita, potenciada pelas más estradas, falta de equipamento de segurança na condução e pelas caraterísticas intrínsecas do veículo.
XF-17: historial e a concorrência
Em plena década de 80 ocorre um facto que representou um grave problema para a marca: a Zundapp alemã declara falência! A marca, que se hoje tivesse sobrevivido já seria centenária, fechava as portas e com ela a Famel viu-se numa situação muito complicada pois deixou de ter acesso aos novos desenvolvimentos que o fabricante alemão (que chegou a construir aviões) ia realizando.
A título de mera curiosidade, após a falência da Zundapp o recheio da mesma foi enviado, imagine-se, para a China que comprou tudo! Para bom entendedor…
Fazer atualizações, sobretudo a nível estético, era importante para acompanhar o mercado e a concorrência, mas acabou por não ser suficiente, mais ainda numa altura em que concorrência era fortíssima e as vendas de ciclomotores estavam já a dar sinais de desaceleração.
Na segunda metade da década de 80 lançou a XF-21 que, em termos estéticos, representou um passo à frente, sobretudo por causa da harmoniosa decoração (sou fã em particular do preto e amarelo) e da pequena carenagem, mas o facto é que o motor pouco diferia do que equipava a XF-17.
Alguns anos mais tarde, já numa fase de “sofrimento”, lançou ainda a XF-25 em que, novamente, o motor era a base que já tinha uns bons 20 anos, mas a estética representou um grande avanço, com uma carenagem integral e uma melhoria no comportamento da suspensão traseira com a adoção de um sistema de monoamortecedor.
Partilho também uma imagem de um exemplar muito “adulterado” de uma XF-25 e que pouco tem a ver com a moto original, mas pode haver uma explicação, aparte do gosto pessoal: a adoção de mais superfícies carenadas representava um custo incomportável em caso de queda, além da dificuldade crescente em conseguir as mesmas. Resultado: depois do acidente cada um fazia o que queria, além de que menos peso era (e continua a ser) sinónimo de melhor performance!
A XF-17, super ou não, é na atualidade, a mais procurada de toda a família. Encontram-se exemplares que parecem verdadeiramente acabados de sair do stand, mas os preços de venda refletem isso mesmo, até porque o facto de ter muitas superfícies cromadas encarece (ainda) mais o trabalho de restauro e algumas peças são cada vez mais difíceis de encontrar, implicando ginástica, resiliência, tempo e criatividade mental.
Muitos dos/as fãs de motorizadas nacionais têm mais que um modelo, mas é comum dizerem que se pudessem ter apenas um único, a eleita seria uma XF-17, variando depois a escolha de rodas com aros ou jantes, nas cores, na refrigeração… da minha parte talvez não fosse a minha primeira escolha, mas reconheço que exerce um fascínio incrível só de olhar para ela, sobretudo quando vista de perfil.
O último modelo da Famel, antes da triste falência (mais uma) foi uma Scooter de seu nome Eletron, feita em parceria com a Efacec (que também não está a ter uma vida fácil na atualidade). Era uma scooter puramente elétrica e bem à frente do seu tempo, havendo até registo de uma exportação de cerca de 200 duzentas unidades para França.
Aproveito ainda a oportunidade para divulgar, sobretudo para quem não conhece, um filme muito divertido, para ver sozinho, em família, no café com os amigos… que é um hino à marca e em particular a este modelo.
O filme chama-se A última Famel, com realização e argumento de Jorge Monte Real, é de 2009 e o papel do ator José Carlos Pereira (Tinoco Faneca) é sublime, tal como a XF-17 Super que era de seu Pai. Trata-se de uma comédia imperdível, profundamente satírica e pode ser facilmente encontrada no Youtube. Até se fala de milho transgénico por lá e tudo! Uma delícia!
Teve depois uma sequela, em 2014, novamente com a realização de Jorge Monte Real e denominada Famel Top Secret. O papel principal é de um “filho da terra”, Pedro Anjos, ou simplesmente PêPê, que é natural de Águeda e já tinha participado (e sofrido muito) no filme inicial. Pessoalmente temo sempre que as sequelas sejam inferiores ao original (talvez tenha acontecido isso também com a XF-21 e 25), mas vale bem a pena ver os dois filmes.
Termino com uma menção ao recente projeto de “relançar” a XF-17, mas agora numa versão ambientalmente muito mais correta: E-XF! Nitidamente inspirada na mítica XF-17, a nova E-XF adota uma motorização elétrica e outras mordomias atuais, caso da iluminação LED e sistema de travagem de disco à frente e atrás, com a inclusão do sistema CBS (Combined Brake System) e pretende ser o ressurgimento da marca.
O responsável da marca, Joel Sousa é bem claro: “Regresso como marca Portuguesa de Motociclos Elétricos foi uma decisão difícil por causa da herança e cultura do passado, mas abraçamos esta missão para um futuro mais limpo e afirmarmo-nos perante as próximas gerações que serão também os nossos motociclistas, como uma marca voltada para o futuro”.
De acordo com o que pesquisei, a comercialização irá iniciar-se este ano com preços a rondar os 4000 euros, tendo por base um motor elétrico à roda com potência máxima de 5kW e velocidade máxima de 70km/h (limite legal de 45km/h). A bateria necessita de cerca de 4 horas para uma carga completa, com uma autonomia a rondar os 70 km. Ficamos a aguardar positivamente.
A XF-17 é um veículo sobre o qual também há imensa informação disponível, inclusive em vários dos livros do Pedro Pinto, nomeadamente o das “50 Motos Portuguesas”, editado o ano passado pela Quetzal, mas deixo algumas fontes de informação adicionais:
Revista Motos Clássicas e Vintage (MCV): n.º 14, com um artigo dedicado à XF-17;
Revista Motos Clássicas e Vintage (MCV): n.º 20, com um artigo dedicado à XF-21;
Portal dos Clássicos: vários tópicos sobre o modelo;
SóClássicas: blog incontornável pela qualidade, quantidade e diversidade da informação;
Motorizadas 50: mais um ponto de acesso para informação sobre a XF-17 e não só;
Famel Blogspot: o nome diz tudo. Referência incontornável;
Nobre Povo – Famel: vídeo fantástico, incluindo vários testemunhos de antigos operários;
Rodas de Viriato. Blog com imensa informação sobre todas as nacionais.
Para o próximo número vamos debruçar-nos sobre mais uma das várias 50 nacionais que fez e faz furor. Só posso adiantar que Vão 5! Esperem pela próxima sexta-feira!
Texto: Pedro Pereira