Vivemos tempos complexos e o futuro europeu, também em termos de produção de motos, respetivas peças e acessórios, não se afigura muito risonho.
A queda iminente de um dos seus principais a protagonistas, o Grupo KTM (que alberga também as marcas Husqvarna, GasGas e MV Agusta) é apenas o sinal mais visível e o CEO do grupo KTM, Stefan Pierer, assume as dificuldades e que vai ser difícil conseguir ultrapassar esta fase sem sofrimento. A solução pode passar por despedimentos, venda de marcas, abandono da competição… entre outras medidas draconianas.
Porém, é de prever que não seja o grupo KTM o único a enfrentar sérias dificuldades nos tempos mais próximos, tal como já está a acontecer também no seio da indústria automóvel, sendo que o exemplo do maior construtor europeu, Grupo VW, reforça isso mesmo e mostra como o mundo está a mudar.
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As lições da história
Os menos jovens talvez ainda se recordem de como a indústria de motociclos da Europa, em especial a inglesa, mas todas as outras, incluindo a nacional, acabaram por ser derrotados pelos japoneses na década de 60 e seguintes. Foi um novo paradigma que chegou, muito assente na qualidade e inovação e não tanto nos preços mais baixos, como está agora a suceder.
Apesar de tudo, a indústria europeia não morreu por completo e houve várias marcas que conseguiram sobreviver, mas nunca mais foi recuperado o esplendor que até aí existia. Se nessa época a “ameaça” vinha do Japão, agora também vem do Oriente, mas os protagonistas são outros: a Índia e, ainda mais, a China!
Basta ler a reportagem publicada na Revista Motos #105, deste mês, para perceber que muitas das novidades do Salão de Milão são oriundas destes dois países, muitas vezes até em marcas com origem europeia, caso da Morbidelli, Benelli, Moto Morini ou Royal Enfield, apenas para dar alguns exemplos.
As marcas europeias (e também americanas) estão novamente debaixo da linha de fogo porque a concorrência asiática é formidável, tem recursos quase infinitos e o próprio mercado interno está a crescer de forma imparável. Ainda por cima, as marcas europeias, com a sua crescente deslocalização, facultaram-lhes todo o seu know-how de décadas de investigação e desenvolvimento.
As marcas nipónicas também vão sofrer, mas o facto de terem uma dimensão global mais alargada e uma forte penetração nos mercados mais promissores do mundo, nomeadamente na Ásia, fazem com que o impacto desta nova vaga seja inevitável e as suas consequências imprevisíveis, mas não tão graves.
Em Milão viu-se que o mercado de duas rodas está de boa saúde e as perspetivas são mesmo animadoras, mas os colossos asiáticos vão mesmo dominar o mercado europeu em pouco tempo e isso até já se verifica em Portugal, como aconteceu recentemente com o fenómeno CFMOTO 450MT que liderou as vendas nacionais ainda há pouco tempo.
A história mostra-nos que nem todos conseguem sobreviver às revoluções, e é isso que já está a ocorrer, e se a penetração das motos elétricas começar a acelerar, como já sucede nos automóveis, então a disrupção será ainda maior, embora os compradores de motos sejam mais conservadores. Há até marcas de motos elétricas a desaparecer, caso da Energica Motor Company que é também europeia, mais concretamente italiana!
O efeito Donald Trump
Os Estados Unidos vão ter a partir do próximo dia 20 de janeiro o seu 47.º mandato presidencial. Donald Trump será novamente inquilino da Casa Branca e já prometeu que tudo fará no sentido de “Tornar os EUA grandiosos outra vez”, seja de que forma for, incluindo a aplicação de taxas alfandegárias a tudo o que vem de fora, para promover a economia nacional.
Caso se confirme esta intenção, tudo aponta que sim, também a indústria de motociclos e acessórios e peças vai sofrer. Um dos mais prejudicados será o Grupo KTM. Afinal de contas, os Estados Unidos são o seu principal mercado, nomeadamente nas motos de MX, SX e Enduro e as taxas alfandegárias vão encarecer as motos e, desse modo, reduzir ainda mais as vendas.
Mesmo Portugal vai sofrer na pele as consequências. Basta pensar na AJP que tem nos Estados Unidos um importante mercado ou nos fabricantes de peças e acessórios como a Polisport que também podem sofrer um importante revés nas suas exportações para aquele mercado gigante.
Se for este o caminho, obviamente que a Europa não vai ficar parada e vai pagar na mesma moeda e o resultado é óbvio: as centenárias marcas norte-americanas Harley-Davidson e Indian Motorcycles vão ficar também mais caras por via fiscal e as vendas vão ressentir-se.
A confirmar-se esta possibilidade, as marcas orientais, em especial oriundas da China e Índia, vão acabar por ser beneficiadas, até porque têm capacidade para suportar o agravamento fiscal. Com a sua política de uma qualidade cada vez mais elevada, boa dotação de equipamento e preços contidos vão conseguir uma fatia do mercado ainda maior.
O que podemos esperar?
O momento que estamos a viver é nitidamente perturbador e a mudança vai ser acelerada. Continuam a chegar novas marcas orientais de motos à Europa, tal como de automóveis, como uma regularidade espantosa e sabe-se que há mais a caminho.
Acresce que as marcas europeias, mais focadas nos segmentos médio e alto ou em nichos de mercado, caso do off-road, não conseguem acompanhar a vitalidade das empresas asiáticas. Em muitos casos, estão completamente dependentes destas para a produção das suas próprias motos ou pelo menos de parte delas, sendo que são vários os casos em que na Europa estão apenas os centros de design e alguma investigação e desenvolvimento.
Naturalmente que vão ser necessárias algumas medidas protecionistas para garantir a sobrevivência das nossas marcas e muitos dos nossos empregos, mas essa não é a solução. É apenas uma parte dela que a questão é bastante mais complexa! Aplicar taxas não resolve tudo e acaba por ser tornar contraproducente, até porque o outro lado não vai ficar impávido e sereno e vai fazer o mesmo.
Vai ser necessária uma maior resiliência das marcas europeias, com uma aposta em produtos de qualidade e diferenciadores. Os preços, em alguns casos, vão ter de ser reajustados para baixo, mesmo que isso signifique margens de negócio ainda menores.
Mesmo ao nível da competição, onde agora os chineses e indianos estão a começar a entrar, é quase inevitável que marcas europeias ponderem se vale a pena continuar neste mercado que dá ótimos resultados em termos de publicidade e inovação, mas com custos muito elevados. Os japoneses que são bastante pragmáticos, veja-se o recente exemplo da Suzuki, já deixaram o MotoGP e não foi por acaso.
Resumindo, estamos a atravessar um momento muito desafiante e os nossos decisores e gestores têm de ponderar muito bem quais as opções estratégicas que pretendem tomar, pesando as diferentes variáveis.
Da nossa parte, enquanto motociclistas e consumidores, cabe-nos fazer as melhores escolhas, sendo que o preço final é apenas uma das faces do cubo, ainda que muitas vezes a mais determinante nas nossas opções!