Nota Introdutória:
Como indicado na semana passada, em que abordámos a Suzuki GS 500, vamos ficar-nos pelo Japão ainda esta semana, sendo que a moto de hoje é verdadeiramente especial e é com ela que nos despedimos das 500 cc. Atrevo-me até a escrever que há “um antes” e “um depois” da chegada da XT 500 ao mercado, tal a revolução que veio causar no mundo motociclístico, em especial no de aventura e das viagens fora de estrada!
Em bom rigor, como talvez ainda se recordem, já apresentámos a família XT quando abordámos a popular XT 350. Na prática, a 350 é uma herdeira direta da 500, não trazendo nada de verdadeiramente novo, mas antes mostrou que era possível alargar o conceito para outras cilindradas, abaixo ou acima, consoante o objetivo pretendido.
Até à chegada da revolução XT as motos de off-road/motocross eram maioritariamente a 2 tempos, com destaque por exemplo para a Honda CR (Elsinore) ou a Yamaha DT1, mas não existiam ainda motos com um caráter mais dual, capazes de uma boa performance no asfalto e fora dele e a descoberta desse filão coube à Yamaha e, mais ainda, com um motor 4 tempos! Exceção talvez possa ser atribuída à Honda XL 250, que tinha chegado ao mercado em 1972, mas era manifestamente pouco…
Porém, quando foi apresentada em 1975, criada sob a liderança do genial Shiro Nakamura, a Yamaha ainda não tinha a real perceção de como iria mudar o paradigma mundial das motos de aventura (que podemos chamar antecessoras das trail ou mesmo big trail). O que apresentou foi uma pura moto de off-road a que deu o nome de TT 500 e que nem sequer tinha ainda luzes ou matrícula! A própria Yamaha ainda não tinha grande know-how em motores a 4 tempos e correu um grande risco, ainda que calculado.
No ano seguinte, percebendo a apetência por este tipo de motos, tomou a decisão de lançar uma versão mais “civilizada”, com todo o necessário para circular na via pública, mas sem nunca deixar de ser uma “4 strokes Trail” (thumper) e estavam lançadas as raízes para o sucesso!
Ainda que com alguma desconfiança inicial, perfeitamente compreensível, a XT 500 era uma moto bastante à frente no seu tempo e não existia nada no mercado assim! Ser pioneiro é isto mesmo! Fazer algo que já podia ter sido feito por outros, mas ninguém o fez antes e depois colher os louros!
Vinha com várias peças de alumínio, caso do depósito (minúsculo com menos de 9 litros), para reduzir o peso, suspensões de longo curso e o motor (que apenas tinha arranque por pedal) possuía um enorme pistão, com uma relação diâmetro/curso bastante “quadrada” de 87 mm x 84 mm, 499 cc, uma única árvore de cames e apenas duas válvulas. Era uma receita verdadeiramente inovadora, potenciada pelo aspeto aventureiro, posição de condução direita, elevada altura ao solo e saída de escape em posição mais elevada.
Aliás, mesmo o coletor, nas primeiras versões, vinha “por baixo” o que foi depois corrigido já que estava muito exposto às pedras, raízes, buracos… num uso mais radical, o que estava perfeitamente ao alcance desta moto e era o seu ingrediente principal face à concorrência e passou a ser posicionado lateralmente ao cilindro.
Apesar de ter apenas uns “míseros” 32 cv às 6.500 rpm e cerca de 40 nm de binário às 5.500 rpm, era um verdadeiro colosso, até porque o seu peso, em ordem de marcha, era de cerca de 150 kg, um verdadeiro peso pluma, para a época e para os dias de hoje! Imagino as sensações que despertou por esse mundo fora, em especial nos aventureiros que queriam algo mais do que aquilo que o mercado tinha para lhes oferecer…
Com um aro dianteiro de 21 polegadas e traseiro de 18, medidas ainda hoje standard para as motos mais aventureiras e uma ampla escolha de pneus, estavam lançadas as bases para uma moto capaz de brilhar no asfalto e fora dele! Boa para viajar por bons e maus caminhos ou para participar em provas internacionais, mas já lá vamos porque foi aí que a XT ganhou mais notoriedade e se tornou a escolha óbvia para tantos aventureiros.
Chegou também a existir uma versão SR 500, em que a base mecânica e muitos dos seus componentes eram comuns à TT e XT 500, mas com o objetivo de fornecer ao grande público uma pura moto de estrada. Em suma, a Yamaha estava a querer chegar com a mesma base a um leque muitos vasto de diferentes consumidores, algo que já percebemos ser muito vulgar nos vários fabricantes.
N.º 20: Yamaha XT 500
Cabe a honra à Yamaha XT 500 de ser o número 20 desta sucessão de crónicas. Estamos exatamente a meio! A primeira crónica, publicada na primeira sexta-feira de abril (que coincidiu com dia 1 e não é mentira), foi sobre a Yamaha DT 50 e a última, a quadragésima, que se prevê publicar a 30 de dezembro, será sobre uma marca diferente, mas com uma moto também ela marcante.
Sobre a XT 500 que apresento (profundamente agradecido ao O. Sousa pela disponibilidade, simpatia e conhecimentos) é um espetacular exemplar de 1977, importado de Inglaterra há uns anos e que foi integralmente restaurado, nomeadamente em termos mecânicos já que o motor, numa fase inicial, tinha um problema grave e que podia ser fatal para o mesmo…
Conduzir esta XT foi para mim uma viagem no tempo muito agradável. Colocar em funcionamento não é das coisas mais simples (com a ajuda do descompressor ir usando a perna direita no kick até encontrar a “marca” do ponto morto superior e depois dar uma “Kickada” vigorosa), mas a moto, mesmo para os padrões atuais, não desilude assim tanto e facilmente nos afeiçoamos a ela!
É muito fácil de conduzir e a ligeireza que se sente é uma delícia! Além disso, o binário surge bastante cedo (e desafia a roda dianteira a voar) a caixa de velocidades está muito bem escalonada, ainda que a embraiagem seja algo dura e os travões (ambos de tambor) exijam alguma atenção, mas reforço o óbvio: estamos a falar de um projeto de meados da década de 70! Temos que enquadrar a nossa análise na altura da comercialização e não de acordo com os cânones atuais.
Voltando à questão da fiabilidade, o motor era também um banco de ensaio para a marca cujo conhecimento nas motorizações 4 tempos ainda era reduzido e começaram a surgir falhas catastróficas ao nível da árvore de cames e até da corrente de distribuição. A situação era mesmo grave (potenciada por muitas destas motos terem uma utilização mais severa) e a própria marca acabou por ire fazendo alterações, nomeadamente no circuito do óleo para uma melhor lubrificação e mais fiabilidade.
Rapidamente o sucesso foi para além do esperado! A moto era simples de conduzir, muito robusta e os consumidores rapidamente esqueceram as alternativas, em especial inglesas, mais pesadas e de fiabilidade questionável e a aposta na XT era de tal forma elevada que muitos dos seus donos a começaram a personalizar, a fazer dela uma pura scrambler ou cafe-racer com excelentes resultados.
Ainda por cima, tinha boa acessibilidade mecânica e a manutenção não era muito complicada de executar, mas tinha as suas caraterísticas específicas, caso de ter 3 filtros de óleo, necessitar de afinações de válvulas com regularidade ou um carburador muito sensível, em que qualquer desafinação ou desgaste maior é uma complicação para pôr em funcionamento…
De qualquer modo, a explosão das vendas do modelo (segundo consta, foram vendidos cerca de 150.000 unidades ao longo da sua carreira) deu-se quando, a pedido do importador francês, liderado por Jean Claude Olivier, a moto foi “preparada” para ir correr no Rally Paris-Dakar e o resultado superou as melhores expetativas!
A prova, ainda hoje conhecida como Rally Paris-Dakar, foi fruto da criatividade de Thierry Sabine que se tinha perdido um ano antes no deserto de Ténéré (Líbia) quando fazia o rally Abidjan-Nice e ali quase morreu. O objetivo era criar uma prova de dureza extrema, em que as capacidades dos pilotos e das máquinas, de duas ou mais rodas, fossem levadas mesmo até ao limite, pondo em causa a própria vida dos pilotos e das respetivas equipas que os acompanhavam!
Aliás, essas premissas continuam a ser verdadeiras nos dias de hoje e apesar de uma inevitável “mercantilização” e “profissionalização” da prova, o grau de dificuldade continua a ser elevado e o número de óbitos (pilotos, equipas, assistência…) teima em continuar a crescer, ano após ano. O próprio Sabine faleceu numa queda de helicóptero enquanto acompanhava a prova a 14 de janeiro de 1986.
A primeira edição partiu do centro de Paris (Praça do Trocadéro) a 26 de dezembro de 1978, composta por 182 veículos (80 carros, 90 motos e 12 camiões), sendo que chegaram a Dakar, capital do Senegal, apenas 74! À frente nas duas rodas ficou o piloto Cyril Neveu, em Yamaha XT 500, sendo o segundo lugar ocupado também por uma XT 500 pilotada por Gilles Comte!
Na edição seguinte, a situação repete-se! Cyril Neveu volta a ser vitorioso com a Yamaha XT! No segundo e terceiros lugares ficam mais duas XT 500, pilotadas por Michel Merel and Jean-Noël Pineau. A fama da Yamaha XT está agora no seu auge e é agora verdadeiramente global, tal como o Rally que acabara de ganhar pela segunda vez! No ano seguinte a vencedora é já outra e alemã, mas essa história ficará para uma crónica mais adiante. Fica prometido.
Durante a sua longa vida a moto vai recebendo contínuas melhorias e a sua comercialização vai-se prolongado década fora até 1989, em alguns mercados, mas a concorrência, nipónica e europeia, não dorme e em 1983 a Yamaha lança a sua versão mais “Dakariana” com um monocilíndrico de 600 cc e, gradualmente, com o tão desejado arranque elétrico: a Ténéré 600!
Novo sucesso de vendas, mas não tanto no Dakar! Afinal de contas, o seu poderio estava muito aquém das bicilíndricas da BMW e da Honda, sobre as quais havemos de falar depois. Lembro apenas que foi apenas em 1987 que a Yamaha lançou a sua bicilíndrica XTZ Super Ténéré.
Por falar em sucesso de vendas, é incrível o número de derivações que a família XT foi tendo ao longo da sua vida, sendo que, consoante os mercados, algumas ainda hoje se encontram à venda novas! Sempre com motorizações a 4 tempos e com um caráter mais ou menos dual.
Porque é realmente tão especial a XT 500?
Este espetacular exemplar matriculado em 1982 (mais uma vez, obrigado O. Sousa) explica um pouco mais porque esta é uma moto verdadeiramente peculiar: face à versão de 1977 continua a ter o mesmo monocilíndrico, os dois amortecedores traseiros e até a inexistência do motor de arranque, mas foi evoluindo e ficou cada vez melhor: a decoração é outra (depósito é sublime), os aros são dourados e até a ponteira de escape diferente, sendo que o motor é agora mais fiável e robusto e a própria ciclística já sofreu atualizações.
Além disso, marca no contador apenas 16.900 km’s (reparem como a zona vermelha do taquímetro começa logo às 6.500 e se prolonga até às 10.000 rpm) e está num estado quase de coleção, tirando a roda traseira que não é original, mas fui informado que já está disponível uma original (em tom dourado, tal como a dianteira) para lá colocar.
Ainda assim, a Yamaha ainda não estava completamente satisfeita e queria ter mais protagonismo e notoriedade, fosse por que via fosse! Nesta altura a indústria motociclística europeia agonizava (a inglesa já tinha desaparecido, a italiana e alemã estavam com sérios problemas) e havia que fazer frente, sobretudo, às outras marcas japonesas!
Já vinha de décadas atrás a ideia de associar as motos ao cinema (vimos o exemplo da Vespa, mas há muitos outros, tal como já indicámos na nossa rúbrica “10 semanas, 10 filmes” sobre os quais ainda não falámos, caso da marca Harley Davidson. O construtor japonês fez mais uma jogada de sucesso, associando a sua XT 500 ao escritor Ian Fleming, cuja genial personagem, James Bond, já era um verdadeiro clássico com 11 filmes da saga até à data.
No filme de 1981 “For your eyes only” (traduzido por “Missão Ultra-secreta”), em que o papel de James Bond é interpretado por Roger Moore, temos a XT 500, logo em dose dupla, como uma protagonista do filme que quase consegue ofuscar o Espião ao serviço de sua Majestade!
Partilho convosco o vídeo que, imagino eu, a maior parte de vocês já viu muitas vezes, mas é uma perseguição que ficou para a história do cinema: 007 é perseguido por 2 bandidos, montados em duas XT 500. A ação decorre na neve, as motos têm pregos nas rodas, os piscas dianteiros giram sobre si mesmos e são agora metralhadoras que tentam, por todos os meios, abater o herói que vai tentando fugir, apenas confiando nos seus esquis e na sua habilidade.
Chamo a atenção para a riqueza e detalhe das cenas também por outro motivo: há mais de 40 anos atrás a tecnologia era muito diferente da atual, nomeadamente no processo de filmar e editar cenas de ação. Deve ter sido uma tarefa ciclópica conseguir filmar também em cima de uma moto e dar um realismo tal que mais parece que vamos a conduzir! Algo banal nos dias de hoje e acessível a qualquer um de nós, mas muito complexo na época.
A última cena é mesmo brilhante: o vilão, após verificar que a sua arma está inutilizada, pega na XT 500 ao colo e trata de a arremessar contra 007. Apesar de falhar o alvo, a mensagem é óbvia: a XT 500 é tão leve que até lhe é possível pegar sozinho!
Escusado será dizer que este filme deu um importante acréscimo à fama da marca a nível global e às vendas da mesma, de tal forma que a marca “desinvestiu” vários anos no Dakar e só em 1991 voltou a ganhar uma edição pelas mãos do “Senhor Dakar”, ou seja, Stefan Peterhansel, mas essa história fica para mais tarde, que agora estamos focados na XT 500.
Como vai sendo habitual, as principais fontes de informação são em outras línguas, tirando as eventuais revistas especializadas portuguesas, caso do número 15 da Motos Clássicas & Vintage, que dedica 8 páginas ao modelo, que bem merece essa menção. Afinal de contas, a XT faz parte da herança motociclística do século XX.
XT500 forum: ponto de partida obrigatório sobre o modelo;
Bike-urious: história muito detalhada do modelo;
Timeless2wheels: mais outra história detalhada do modelo;
ljthomp: detalhes sobre a XT, nomeadamente as versões americanas. Muita informação;
XTandTTowners: na rede social Facebook, com muita informação;
XT500.org: ainda que em alemão, tem imensa informação, alguma em Inglês.
Para o próximo número vamos subir de cilindrada, mas não damos logo o salto para as 600 cc. A escolhida é a primeira custom a ser diretamente abordada nas nossas crónicas e ainda hoje é muito apreciada, sendo que quase todas foram já alvo de alguma personalização e é o estilo de moto que convida a isso mesmo, sendo também muito apreciada pelo sexo feminino! Até sexta-feira!
Texto: Pedro Pereira