Nota Introdutória:
Após uma rápida paragem nas 300 cc fazemos um pequeno salto para a cilindrada acima. A convidada desta semana é uma 350 cc, oriunda do Sol Nascente e que teve uma popularidade enorme no nosso país e mesmo à escala global. Não foi a primeira da sua família (essa honra pertence à XT 500 de que falaremos mais adiante), mas teve um papel determinante na sua aceitação e sucesso.
A história da centenária marca, fundada em 1887 por Torakusu Yamaha, também não começou pelas motos, nem nada que se pareça! Na sua génese estiveram os instrumentos musicais, mais concretamente os órgãos e pianos! Está aqui a explicação para o seu símbolo serem 3 diapasões cruzados entre si e para muita gente, de forma brincalhona, dizer que a Yamaha não é marca de motos, mas antes de pianos!
Foi preciso o fim da Segunda Guerra Mundial, tal como noutras marcas, para que fosse criada em 1955 a Yamaha Motor Co., Ltd., completamente autonomizada e dedicada à indústria das duas rodas. Por trás dessa decisão estava o nome do seu Presidente: Genichi Kawakami e a primeira moto criada era uma 125 a 2 tempos, chamada YA-1 (Dragão Vermelho Voador), baseada na alemã DKW RT 125.
O sucesso a nível interno foi imediato, sobretudo após a moto “nacional” ter ganho a subida ao Monte Fuji, que era uma das maiores competições da época no Japão, fora do alcatrão. Os pilotos corriam com uma moto de série, saindo de Fujinomiya e terminavam a prova 3776 metros mais acima, junto à cratera do vulcão.
Depois desta vitória a marca ganhou uma projeção incrível e imparável! Estava dado o mote para uma das marcas de maior sucesso a nível mundial, em termos de vendas e resultados na competição, algo que ainda hoje se mantém.
A década de 60 foi o começo da sua grande afirmação à escala planetária, ainda que sempre centrada nas motorizações de ciclo a 2 tempos, ao contrário de algumas das suas mais diretas concorrentes japonesas que começaram logo a apostar nas motorizações a 4 tempos.
Claro que havia um significativo “atraso” face às produções europeias e norte-americanas, mas os japoneses, fruto de uma filosofia de dedicação extrema, grande profissionalismo e capacidade de trabalho começaram a recuperar o tempo perdido e a fazer frente às grandes companhias perfeitamente estabelecidas.
É na década de 70 que a Yamaha se afirma em definitivo e as exportações crescem a um ritmo avassalador, ajudando quase ao “desaparecimento”, por exemplo, da poderosa indústria britânica de motociclos (Triumph, BSA, Norton…), bem como ao definhar da de outros países, incluindo a Portuguesa, como vimos nas crónicas iniciais.
A pioneira da família XT (X significa 4 tempos e T simplesmente trail) foi a XT 500, mas os japoneses cedo perceberam o potencial da sua trail bike, com raízes no Dakar e reais capacidades de andar fora de estrada, recuperando um pouco do espírito da moto inicial, a tal que tinha ganho a subida ao Monte Fuji e catapultado a marca para o sucesso.
A família XT, sempre com motorizações a 4 tempos, teve uma diversidade de modelos e motorizações ao longo dos anos, mas a génese era a mesma, fosse na XT 125, XT 225, na XT 350, na XT 500, na XT 550, na XT 600, XT 660 ou XT (Z) 750 e XT (Z) 1250, estas duas últimas já bicilíndricas e mais extremas: uma moto fácil, robusta, fiável, divertida, de caráter dual, capaz de um bom desempenho na estrada ou fora dela. Mesmo a atual Ténéré 700 segue um pouco a mesma linha, sendo uma espécie de herdeira espiritual, dando continuidade a este rico legado!
N.º 15: Yamaha XT 350
A XT 350 foi, no nosso país, uma verdadeira “instituição”, passe a expressão e mesmo agora encontram-se com grande facilidade e a preços relativamente aceitáveis, mesmo que grande parte delas já não esteja num estado muito recomendável, pelo menos em termos estéticos.
A sua produção teve início em 1985 e terminou em 2000. Ou seja, 16 anos de produção ininterrupta, o que é um período bastante extenso, mas o mais interessante nem sequer é isso: é o facto de que durante a sua carreira, tirando as inevitáveis alterações cromáticas, o modelo esteve sempre sem sofrer alterações de fundo!
Teimosia? Certeza na qualidade do produto? Ausência de concorrência? Fidelidade ao original? Não tenho uma resposta, mas é admirável termos um produto num mercado tão concorrencial como o das motos sem evolução relevante durante tanto tempo, algo que é praticamente impensável nos dias de hoje!
A que vos trazemos hoje é na tradicional cor vermelho e branco, talvez o padrão mais vulgar de todos, de tal forma que se encontra em diversos anos e mercados. Aliás, esta era verdadeiramente uma moto global, ao contrário de outras cilindradas que não estavam disponíveis em todos os mercados, o que mostra bem o cuidado da marca e adaptar-se aos gostos dos clientes e às especificidades dos diferentes mercados.
Desde o início tinha como propulsor um simpático monocilíndrico com 350 cc (346 cc para ser mais rigoroso), refrigerado a ar, com 4 válvulas por cilindro, comandadas por uma dupla árvore de cames (dohc) e alimentado por um carburador de “duplo corpo” (YDIS) que mais parece serem 2 carburadores independentes, mas não são. Interessante também o facto de ter 2 coletores de escape, apesar de ter apenas um cilindro.
Debitando perto de 30 cv e um binário de 29 nm, era capaz de uma velocidade de ponta de quase 140 km/h, mas a velocidade de cruzeiro ficava abaixo disso, algo como entre os 110 e 120 km. Os valores não são surpreendentes, até porque o peso total rondava os 135 kg a cheio, mas eram francamente interessantes e como era económica (consumos abaixo dos 4 litros sem dificuldade), os 12 litros do depósito davam facilmente para 250 km ou mais.
A moto era robusta, tinha elevada altura ao solo e boa capacidade de carga, incluindo para pendura e bagagens. Aliás, foi a primeira moto “a sério” de muita gente que ia nela para todo o lado, dentro e fora do asfalto, incluindo alguma capacidade de fazer percursos de quase enduro, onde a principal limitação estava nas suspensões, tendencialmente muito macias e na reduzida capacidade de travagem à frente (pistão simples a morder um disco de 220 mm) e tambor na roda traseira.
Como as medidas de pneus eram 21 e 18 estava também garantido a oferta dos mesmos era imensa e para todos os gostos. Estava aqui um ótimo upgrade para uma DT 125R, ainda que gastando algum dinheiro (em 1990 uma DT 125R custava 498 contos e a XT 350 663 contos) e com notáveis poupanças em consumo de óleo e combustível, além de um valor de binário bastante superior, o que evitava constantes passagens de caixa.
O regime máximo da potência era atingido por volta das 7500 rpm e apesar da zona vermelha começar apenas às 8500 rpm. Não adiantava muito ir além das 7500 rpm porque se percebia nitidamente que o motor já ia em esforço e pouco mais tinha para dar. O ideal era subir para a mudança acima ou caso fosse para andar a regimes mais elevados, pensar em mudar de moto. Para quem vinha de um motor 125 a 2 tempos, capaz de facilmente fazer 10.000 rpm, sabia a pouco, mas não se pode ter tudo!
Singularidades da XT 350
Eça de Queirós escreveu “Singularidades de uma rapariga loira” e é uma história muito romântica em que o “pobre” Macário se apaixona pela loira Luísa e faz de tudo para merecer o seu amor, incluindo ser expulso de casa e ter de ir trabalhar para Cabo Verde para fazer fortuna e, finalmente, poder casar com a sua apaixonada. No final de tudo, descobre que ela não era bem o que estava à espera e não há casamento! Vale a pena (re)ler a história.
Serve esta analogia, marota, para partilhar a realidade sobre a quase eterna XT 350, moto de muitas virtudes e qualidades, mas também coisas menos boas! Não se dê o caso de o Macário que existe em nós se apaixonar pela Luísa XT e descobrir da pior forma que há aspetos para os quais importa estar alerta, mais ainda na atualidade em que todas as simpáticas XT 350, loiras ou não, já atingiram a maioridade e, algumas delas, estão a caminho da ternura dos 40…
A primeira delas, na minha perspetiva, é a embirrante ausência do motor de arranque! Como é possível que a marca nunca o tenha proposto, nem mesmo como opcional? Teria aumentado as vendas e facilitado a vida a muita gente! Não que seja muito complicado “dar ao pedal”, mas ajudava muito, nomeadamente quando a moto está parada há algum tempo ou o motor muito quente e a tarefa se torna mais complicada. Além disso, tornava-a mais atrativa para o público feminino.
A decisão, inteligente, de tornar o descompressor automático (é um pequeno cabo de aço que liga diretamente a base do kick a um martelo de uma válvula de escape, abrindo-a ligeiramente para sair alguma compressão ao acionar o mesmo) faz todo o sentido. Porém, o mesmo rompe-se com alguma facilidade e colocar o motor a trabalhar nestas condições torna-se mais desafiante (eu que o diga), que a compressão é já alguma! Mais vale ter um cabo suplente e aprender como se muda!
Cuidado com o nível de óleo. Estamos perante um motor a 4 tempos em que o óleo acaba por ter um papel ainda mais importante. O cárter tem apenas capacidade para 1,3 litros (1,4l mudando o filtro) e uma descida no nível do mesmo (por exemplo por haver alguma passagem pelos segmentos) pode ter consequências funestas. Custava assim tanto adicionar uma luz avisadora de nível de óleo baixo? Era uma mais-valia importante!
Já agora, a marca recomenda que o mesmo seja mudado a cada 6 meses ou 6.000 km. Com a qualidade dos óleos atuais e a bem do ambiente, na minha perspetiva, a periodicidade pode ser aumentada, mas sugiro não ir além dos 6.000 km ou um ano e mudar sempre o respetivo filtro, além de verificar se existem limalhas ou outros detritos. Já agora, convém verificar as válvulas, por exemplo a cada 10.000 km (é preciso uma ferramenta específica para este modelo ) e perceber que um tensor ou uma corrente de distribuição não são eternos.
A travagem, já mencionada, também é curta para as necessidades, seja à frente, seja atrás. Porque nunca foi melhorada, como sucedeu com a DTR? Em 1994 a XT 350 custava 796 contos e a DTR 125 588 contos. Com um diferencial de mais de 200 contos não podia ter um disco de travão traseiro? Para agudizar o tambor traseiro, se sujeito ao contato direto com água, caso da lavagem com pistola de pressão, fica quase inoperacional até a água sair! Apanhei um grande susto à conta disso e não devo ter sido caso isolado!
Por outro lado, existem uns pequenos defletores de ar nas laterais do depósito cuja função é canalizar o ar fresco para a zona mais quente do motor, ou seja, cilindro e coletor de escape. Faz todo o sentido. Porém, a facilidade com que se perdem (ou roubam) é gritante! Bem que podia ter sido melhorada a forma de fixação até porque o motor já aquece bastante e sem eles… ainda pior!
De qualquer modo, para mim a principal crítica a esta simpática moto é a fragilidade crónica das falanges de admissão que conduzem a mistura ar/gasolina (a tal mistura estequiométrica em que temos cerca de 14,7 partes de ar para uma de combustível) do carburador para o cilindro. Todas as XT 350 que conheci padeceram desse mal! Mais cedo ou mais tarde criaram fissuras no material e com a mistura desequilibrada a combustão torna-se imperfeita, podendo o motor acabar por parar.
Imagino que a marca tenha ganho imenso dinheiro a vender kits de substituição desta peça. Porém, em nada ajudou a manter a fama de moto quase indestrutível. Além disso, foi uma oportunidade para a indústria de peças auxiliares fazer uma peça da concorrência, havendo até quem tenha ido mais longe e criado uma peça “home made”, como se pode ver nesta foto.
Para quem goste de bricolage, direi que o processo de troca nem sequer é dos mais complicados, mas leva o seu tempo: tirar selim, depósito, desmontar cabos do acelerador, retirar carburador e trocar as duas falanges (é um erro trocar apenas uma porque a outra vai ter o mesmo problema em breve). Já que se está a mexer, convém fazer uma limpeza geral ao carburador e ver o estado de desgaste do mesmo. Existem kits de reparação, mas se parecer algo complicado, mas vale entregar a quem saiba!
Fora estas pequenas singularidades, costuma ser realmente uma motinha muito agradável de se ter e conduzir. Provavelmente nunca será uma moto muito cobiçada e valorizada (nem tem um historial de inovação ou competição que ajudem nesse sentido), mas é o tipo de moto que dificilmente vos vai deixar ficar mal, dentro das suas limitações e capacidades.
Destaque ainda para o facto de a própria Yamaha ter comercializado uma versão mais direcionada para o fora de estrada “puro e duro”. Chamava-se TT 350, esteve disponível até ao meado da década de 90 e tenho dúvidas se chegou a ser comercializada no nosso país. A única que conheço de perto veio importada dos Estados Unidos e é, basicamente, uma XT 350 mais bem equipada, em especial ao nível das suspensões, para todo-o-terreno.
Como vai sendo habitual, as principais fontes de informação são em língua inglesa, com uma honrosa exceção de que vos vamos dar conta de seguida:
ClubeXTPortugal: Imensa informação em Português, para toda a família XT e TT. Excelente;
Thumpertalk: Fórum que é uma verdadeira Bíblia para motores a 4 tempos. Está lá tudo;
ADVRider: Forum com um tópico sobre o modelo com mais de 300 páginas;
CycleChaos: História do modelo, a realidade norte-americana é um pouco diferente da nossa;
Motorcycle.com: Análise muito detalhada ao modelo;
XT225.com: Apesar do nome, debruça-se sobre toda a família XT, incluindo a 350.
Para o próximo número não vamos ainda subir de cilindrada. Vamos analisar uma forte concorrente da XT 350 que, ao longo da sua carreira, sofreu algumas alterações para a tornar mais competitiva e atual, caso do desejado motor de arranque. Foi ela, de facto, a principal e quase única verdadeira concorrente da simpática trail da Yamaha. Até sexta-feira!
Texto: Pedro Pereira