Nota Introdutória:
Continuando fiel à trajetória inicialmente definida, a nossa paragem é agora nas 125 ou, se preferirem, as cilindradas de oitavo de litro. Afinal de contas, 125×8 corresponde a 1 litro ou 1000 cc, aproximadamente. Na minha perspetiva é uma cilindrada bastante equilibrada e um excelente degrau acima para quem começou nas 50 cc e procura um pouco mais, sobretudo nos motores com ciclo a 2 tempos que “dominavam” as décadas de 70, 80 e até 90.
Vamos até Itália. Um dos países mais encantadores, não apenas da Europa, mas de todo o mundo! Conhecido pela história, pela influência determinante na Cultura e Língua de muitos países (incluindo o Português), a gastronomia, os vinhos, os carros, a moda e pelas motos!
Falar de motos é quase sinónimo de falar de Itália, tal a adoração dos italianos por estes veículos ou a riqueza de marcas, fabricantes, pilotos e invenções que ajudaram a revolucionar o mundo das duas rodas com motor, bem como a melhorar as condições de segurança e conforto de quem anda de moto!
Além disso, o número de pilotos que, nas diferentes modalidades, se destacaram à escala mundial é muito vasto. Destaco apenas 4, sem me preocupar com a época em que foram imortalizados pelas suas conquistas: Valentino Rossi, Tony Cairoli, Fabrizio Meoni e Giacomo Agostini, mas a lista bem que podia continuar…
Para falar sobre a eleita desta crónica é necessário irmos até à década de 40 do século passado. Importa contextualizar para, desse modo, perceber melhor um pouco como tudo se passou.
Na Segunda Guerra Mundial a Itália fez parte das tropas do Eixo (juntamente com a Alemanha, o Japão…), sendo severamente castigada pelos Aliados no decorrer do conflito. De tal forma que quando o conflito terminou, Itália era um país praticamente devastado, com uma economia frágil e era crucial encetar o processo de construção e recuperação, incluindo ao nível da mobilidade. Algo que fosse fiável, robusto, económico, genuinamente italiano e, já agora, atrativo!
O grupo Piaggio já existia desde 1884, criado por Rinaldo Piaggio, um jovem empreendedor que criou um império onde existiam locomotivas, motores, aviões. Após a Segunda Guerra foi o filho, Enrico Piaggio, que tomou posse da empresa e aceitou o duro desafio de criar o veículo que, como hoje sabemos, se veio a tornar imortal e ainda o ano passado comemorou 75 anos de vida, mais saudável que nunca, com vendas totais de mais de 19 milhões de exemplares até 2021!
A primeira tentativa, a cargo de Renzo Spolti e Vittorio Casini não correu bem e Enrico não gostou do resultado do Paperino (Pato Donald, código MP5) e decidiu pedir ajuda a Corradino D’Ascanio (que já trabalhara no desenvolvimento da Lambretta e estava mais ligado à aeronáutica) e o resultado correspondeu ao esperado, com óbvias ligações à aviação:
A nova MP6 tinha um mono-coque revolucionário, um pequeno motor de 98 cc com cerca de 3,5 cv, a 2 tempos, caixa de 3 velocidades (de punho), rodas pequenas, um só lugar e atingia cerca de 60 km/h. Quando a viu, Enrico terá afirmado: Sembra una vespa! Que se parecia uma Vespa… foi esse o nome que ficou!
Já se passaram 3 quartos de século, muitas inovações e desenvolvimentos (incluindo recentemente as motorizações elétricas), mas a génese é a mesma e a magia continua pelo que a Vespa ganhou um lugar na história de Itália e do mundo!
N.º 7: Vespa 125 GTR
Dada a diversidade de modelos e até cilindradas (50, 90, 125, 150, 180, 200…) foi uma tarefa algo complexa a escolha de um, mas optei por um que encarna perfeitamente a marca e se encaixa lindamente na lógica das crónicas que tenho criado e espero continuar a partilhar.
É uma Vespa 125 (mais precisamente um motor com 123,4 cc), modelo GTR (Gran Turismo Rinnovato, cujo código interno era VNL2) e debitava pouco mais de 6 CV às 5.000 rpm, mas também pesa pouco mais de 100 kg e a cor é um lindíssimo Azzurro Cina, que podemos traduzir por azul china. Atingia, de velocidade de ponta, uns “estonteantes” 88 km/h.
Trata-se de um exemplar da época da nossa Revolução (este modelo iniciou a sua comercialização em 1968, sucedendo à GT 125 e durou 10 anos até chegar a sua sucessora), relativamente comum no nosso país e que tinha como especial caraterística a robustez a toda a prova, bem como alguma propensão para a ferrugem.
Tem dois selins independentes e acaba por ser até bastante confortável para o passageiro que tem uma útil pega na traseira do selim do condutor. Simples e prático. De destacar também que o passageiro vai numa posição ligeiramente mais baixa que o condutor, contrariando a tendência atual inversa. Quem for “pendura” de perna mais curta terá alguma dificuldade em encontrar “poiso” para os pés, mas nada de muito grave…
O facto de vir acompanhada com uma roda suplente, na lógica dos automóveis, só a torna ainda mais interessante, mais ainda porque a troca do mesmo é relativamente simples à frente (atrás nem tanto) e o melhor de tudo é que a mesma tanto pode ser usada à frente como atrás!
Claro que na atualidade faz mais sentido a Assistência em Viagem, mas há décadas atrás nem assistência, nem telemóvel! Escusado será dizer que, para a eventual troca, é necessário trazer sempre um pequeno kit de ferramentas e existe espaço específico para o mesmo.
A sua proprietária (obrigado S. Pereira) é uma jovem que a aprecia bastante e, quando tem oportunidade, gosta de desfrutar da liberdade de um motociclo que é bastante mais velho que ela, sendo que a considera muito fácil de conduzir e até divertida, embora não adaptada a grandes correrias, como é óbvio! Valoriza sobretudo a experiência de andarem juntas e de, nesses momentos, não pensar em mais nada!
Este exemplar nunca foi restaurado e há por ali marcas de ferrugem, falhas na tinta, falta o logo frontal da marca, entre outras pequenas cicatrizes que o tempo se encarrega de gerar. Na prática, a principal diferença face ao modelo original não se vê: é ao nível do motor! Foi feito um aumento de cilindrada, nada de muito exagerado. O resultado foi um motor mais solto, ganhando bastante em baixas, algo que é muito bem-vindo, sobretudo quando se conduz com passageiro ou em situações específicas como ultrapassagens ou subidas mais íngremes.
Tem todas as virtudes típicas do modelo (facilidade de condução, fiabilidade, economia, carisma), mas também os defeitos, caso das rodas pequenas (10 polegadas) que lidam mal com as irregularidades do piso, a fraca iluminação ou os travões algo limitados numa condução mais empenhadas ou a dois, mas sendo uma verdadeira Princesa, como a dona lhe chama, há que lhe ter respeito e veneração. Também a oferta de pneus podia ser maior.
Para a dona há ainda o lamento do peso e o facto de não ter motor de arranque já que para a colocar em funcionamento tem que usar todo o seu peso. Para uma pessoa que pese 80 kg é facílimo para quem pesar 50… nem tanto! Além disso, o aumento de cilindrada significa mais compressão, logo…
As 4 velocidades (de punho, sendo uma para a frente e três para trás) estão bem escalonadas e permitem explorar o pequeno motor, mas é um veículo para ser desfrutado. Talvez numa lógica parecida com o filme La Dolce Vita (1960) de Federico Fellini em que o ator Marcello Mastroianni (no filme o “jornalista de mexericos” Marcello Rubini) e a atriz Anita Ekberg (no filme a superestrela Sylvia Rank) imortalizaram a Vespa e o “banho a dois” na Fontana de Trevi.
A própria Vespa já tinha sido uma “atriz de sucesso” no filme de 1953 “A Princesa e o Plebeu”, de William Wyler, “contracenando” com Audrey Hepburn e Gregory Peck. O filme é uma comédia muito divertida, sobretudo com a “Princesa” a conduzir uma Vespa pelas ruas de Roma e acabou por garantir um Óscar à atriz. Quanto à Vespa ganhou ainda mais notoriedade!
Ainda um derradeiro destaque para o filme Quadrophenia (1979) inspirado na banda The Who (cujo sexto álbum dá nome ao filme) e com a direção de Frank Roddam. Conta a história de Jimmy (Phil Daniels), que é um Mod e das suas brigas, drogas e frustrações vividas na primeira metade da década 60. O “inimigo” são os Rockers que conduzem motos inglesas como Norton ou Triumph e desafiam os Mod, montados nas suas Vespas e Lambrettas, carregadas com adereços como luzes, retrovisores e muito mais. Destaque para o ator Sting (Ace), à data uma estrela em ascensão nos The Police.
Que futuro para a Vespa?
Como refere uma publicidade da marca: Um ícone não nasce, é feito! A Vespa é muito mais que uma Scooter, é um fenómeno cultural mundial. Colocou a Itália no centro do movimento pós-guerra, tornando-se um símbolo de liberdade e aprimorando o design italiano em todo o mundo. Ainda exposta no MoMa de Nova Iorque, está sempre pronta para fazer sonhar todos os seus admiradores.
Esta descrição da marca diz praticamente tudo! Para as pessoas pouco importa se faz ou não parte do Grupo Piaggio e se a devemos considerar ainda como uma verdadeira scooter ou não. É um ícone, um modelo a seguir e apesar das muitas tentativas de a imitar, a verdade é que continua praticamente imitável e até um pouco imutável.
A sua principal concorrente foi a Lambretta, sobre a qual já falámos no início desta crónica e que se destacava por ter uma vertente mais “desportiva”, se comparada com a Vespa. Durante décadas foi realmente a sua maior adversária e até as origens são similares: pós Segunda Guerra, ajudar Itália a deslocar-se, o papel de Corradino D’Ascanio…
Claro que existiram muitas outras marcas a lutar por este filão do mercado, incluindo a Casal com a sua Carina (infelizmente apenas em 50 cc), a Zundapp com a sua Bella ou a Heinkel com a sua Tourist, mas o facto é que nenhuma delas conseguiu destronar a Rainha Vespa e foram ficando pelo caminho!
Mesmo a Lambretta não conseguiu adaptar-se aos ventos de mudança e nem com a internacionalização da produção (chegou a ter uma fábrica no Brasil) conseguiu sobreviver, sendo que acabou por fechar as portas na década de 70 e “renascer das cinzas” mais tarde, mas essa história fica para outra vez…
Ainda uma nota de tristeza sobre a Lambretta: tornaram-se bastante raras em Portugal nos últimos anos por uma razão muito simples: dada a procura internacional e a limitada apreciação da marca em Portugal, muitas acabaram por ser “exportadas”, empobrecendo desse modo o número de exemplares disponíveis no nosso país. É a (triste) realidade que temos.
Além disso, no nosso país (obrigado Octávio pela informação), a Vespa conseguia uma forte implantação no mercado uma vez que ia às várias oficinas/lojas “oferecer” os seus modelos com condições bastante vantajosas para aí serem comercializados, garantia acompanhamento técnico e peças a preços competitivos, assegurando aos clientes que tinham um produto acessível, de qualidade e com assistência próxima.
Ainda sobre a Vespa, muito mais há a contar, mas deixo um exemplo particular da versatilidade e paixão que sempre conseguiu junto dos fãs da marca: chegou a participar em provas desportivas de fama internacional, com destaque para o Paris Dakar ou o Rali dos Faraós, algo que muitos julgariam completamente impossível!
Mesmo no nosso país, onde a Vespa continua a ser muitíssimo apreciada, chegam a fazer-se provas de resistência com ela, como o caso das 5 Horas Sopa da Pedra em Almeirim (Classes I e II) onde até vieram equipas da vizinha Espanha para participar! Isto diz muito sobre o entusiasmo que gera, bem como a fiabilidade da mesma ou da facilidade de lhe melhorar a performance com aumentos de cilindrada, carburadores, escapes, alterações no sistema de travagem ou suspensões!
Até o facto de a concentração europeia anual – European Vespa Days – ser este ano em Portugal, mais concretamente em Guimarães, mostra que a marca está mais viva do que nunca e o carinho dos seus orgulhosos/as proprietários/as é garantia que vai continuar pujante.
Quase que me atrevo a assumir que o futuro da Vespa é mesmo risonho e o facto de ter várias fábricas espalhadas pelo mundo reforça isso mesmo. Daqui a 24 anos estaremos a celebrar o seu centenário, recheado de sucessos e conquistas. Apenas não consigo imaginar como é que será o seu combustível já que o resto, nomeadamente em termos estéticos, deve continuar a ser bastante fiel ao original de 1946!
A 125 GTR, que partilho convosco, é alimentada por um simples motor a 2 tempos, com a mistura a ser feita diretamente. Agora estamos a dar os primeiros grandes passos na eletrificação, na conetividade e parece que os motores de combustão têm os dias contados. Como será daqui a 20 anos? As novas Vespa serão movidas a hidrogénio? Uma fonte de energia ainda por descobrir? Combustível sintético? Vamos ter que esperar para ver, mas aceitam-se palpites!
Lembro ainda que, felizmente, a maior parte do material para os restauros e reparações ainda é possível de se encontrar com relativa facilidade (para os primeiros modelos e peças muito específicas é mais complicado) e, para quem necessite, existem algumas empresas nacionais que são mesmo especializadas no restauro de scooters, sejam Vespas, mas também Lambrettas, Zundapp, Heinkel e até ajudam em marcas mais exóticas como as Osa, as Rumini, as Vjatka ou as Fuji.
Como vem sendo habitual, deixo algumas referências que podem ser úteis para quem procura mais informação sobre a marca. Na medida do possível, dou preferência a fontes de informação nacionais:
Revista Motos Clássicas & Vintage: n.º 10 dedicado à Vespa 125 GTR;
Horta das Vespas: blog com muita informação, em particular sobre as Vespas, mas não só;
Vespas Clube Portugal: clube de referência incontornável sobre a marca Vespa;
Vespa World Club: a maior referência sobre a marca, mas à escala planetária;
Vespa Clube Lisboa: fórum dedicado à marca, com imensa informação;
Scooter-center.com: Informação detalhada sobre os vários modelos. Aqui o da 125 GTR.
Para o próximo número vamos continuar nas “oitavo de litro”. Porém, vamos voltar ao nosso País, ainda que com fortes ligações a Itália, em especial ao nível do motor. Vamos ter que aguardar pela próxima sexta-feira!
Texto: Pedro Pereira