Nota Introdutória:
Como diz o povo, na sua infinita sabedoria, recordar é viver. Espero sinceramente que estas crónicas sirvam para isso mesmo, até para os que não viveram estes tempos na primeira pessoa, mas sentem que são parte da sua herança, partilhada por pais, avós, amigos mais velhos ou simplesmente porque descobriram esta paixão e agora a querem vivenciar.
Relembro ainda a importância de nos continuarem a ajudar a divulgar este projeto, nomeadamente a partir da nossa Rede Social, através de partilhas, likes, comentários… é a melhor estratégia para lhe garantir um futuro.
Naturalmente que neste recuo no tempo (analepse para os mais eruditos) a SIS – Sociedade Irmãos Simões (mais tarde SIS – Veículos Motorizados, Lda.), fundada por Joaquim Simões Costa no início dos anos 50 tem um lugar de destaque, como não podia deixar de ser.
Chegou a ter duas unidades industriais que, mais tarde se fundiram numa só com instalações na Malaposta (Anadia), mas o momento mais importante, para esta crónica, ocorre em resultado da estreita ligação com a empresa alemã Fitchel & Sachs.
O fruto desta relação foi particularmente proveitoso já que dele nasceu o que é, possivelmente, o mais popular veículo de duas rodas nacional. Ao que consta, foi o que teve produção em maior número (fala-se em cerca de 80.000, muitas para exportação) e, apesar de todas as suas maiores ou menores evoluções, foi comercializado pelo menos durante 3 décadas (sim, leram bem): 60, 70 e 80!
A casa alemã, cuja fundação ocorreu em 1895, passou por várias vicissitudes ao longo dos tempos, sendo que ainda existe na atualidade, mas o seu negócio há vários anos que deixou de estar tão ligado às duas rodas, estando mais focada no mundo automóvel.
Como o resto da esmagadora indústria nacional de veículos de duas rodas (exceção à sobrevivente AJP), também a década de 90 (no caso da SIS mais precisamente em 1995) do século passado e o virar do milénio foram funestos, tal como ilustra este recorte do Jornal Soberania do Povo, de Águeda, que numa edição sua de 2002 publicita a venda, em leilão, das instalações da mesma.
N.º 4: SIS Sachs V5
Quando foi lançada no mercado, ainda eu não era nascido, a V5 apanhou muita gente de surpresa! Representava um grande avanço sobre as motorizadas nacionais existentes (e não só) e tinha um cunho desportivo que nenhuma outra 50 cc conseguia oferecer!
Ao que consta, até parecia ser uma “Moto Grande”, com o seu aspeto desportivo vincado e a clara alusão ao motor de 5 velocidades (daí o V5 nas tampas laterais). Foi-se implantando com várias versões, tentando assim captar distintos segmentos do mercado, tal como referiam algumas das publicidades da época:
Modelo V5 Racing – um modelo de vanguarda, para jovens desportistas, equipado com o mais extraordinário dos motores de 50 c.c. – o famoso Sachs 50 S, com caixa de 5 velocidades, grande estabilidade a qualquer velocidade, alto poder de travagem, bem como a tradicional robustez S.I.S. fazem dele a máquina do conhecedor. Suspensão hidráulica.
Modelo V5 Turismo – para os que sem a fogosidade da juventude são, no entanto, amadores de conforto, rapidez, segurança e da “bela mecânica” S.I.S. oferece a versão “tranquila” da sua versão Sport. Nela encontrarão todas as qualidades que tornaram notável a sua irmã de sangue – V5 Sport.
No início surgiram com as caraterísticas molas cromadas à vista na suspensão dianteira, cilindro minúsculo e uma distinta proteção do escape (são, na atualidade, as versões mais cobiçadas e até raras). Depois foram sofrendo sucessivas alterações ao longo da sua extensa carreira de quase 30 anos. Na sua génese esteve o nome do Eng.º José Quadros.
Graças à proverbial robustez e confiança e ao facto de ser o único veículo de muitas famílias, nasceu a expressão “Vão 5” que se conta da forma seguinte (de ir às lágrimas de tanto rir):
Um Guarda manda parar o condutor, orgulhosamente montado na sua V5, e após uma breve inspeção visual verifica que vai ele sem capacete (não era obrigatório à época), a esposa atrás, um filho pequeno no porta-couves e outro em cima do depósito (andei assim várias vezes) e pergunta em tom autoritário:
– O senhor não sabe que a lotação da sua V5 não são 4 pessoas?
O dono, todo orgulhoso, responde de seguida:
– O senhor Guarda tem toda a razão! Mas a minha mulher está de esperanças e em breve já Vão 5!!!
O seu preço inicial, cerca de 10.500 Escudos, não era propriamente uma pechincha, mas ter uma certamente que valia cada Tostão e o sucesso não abrandou, sendo ainda hoje muito apreciada também noutros países, como mostra este exemplo do fórum AdvRider.
A que aqui vos apresento (obrigado Esteves) é do início da década de 70 (mantenho a filosofia de me centrar em veículos a partir da década de 70) e é, simplesmente, “linda de morrer”. Não foi alvo de restauro e, quanto a mim, ainda bem porque tem uma patine que o meio século de vida lhe trouxe e se iria perder!
Trata-se de uma V 5 Turismo, ainda com o “cilindro pequeno”, ou seja, alhetas de pequenas dimensões e exala charme só de olhar! Claro que faltam os autocolantes, há por ali algumas marcas de ferrugem, calculo que o selim tenha sido estofado, o escape está demasiado bom para a idade (talvez uma réplica da Jamarcol ou muito trabalho de recuperação) mas toda ela é um regalo para os sentidos!
A forma como a pintura (julgo ser grená) se foi alterando ou os resquícios do axadrezado nos amortecedores traseiros são pormenores deliciosos, tal como o pequeno apêndice no guarda-lamas dianteiro e a “chapinha” com o nome do proprietário junto ao cubo dianteiro. Apresento também uma foto de exemplar meticulosamente restaurado para que se tenha um termo de comparação. Qual apreciam mais? Eu fico dividido, mas sou suspeito!
Por mim esta ficava mesmo assim como está! Só lhe fazia uma verificação mecânica mais profunda (um novo pistão e segmentos dá sempre jeito, bem com uma limpeza ao carburador), escondia melhor algumas ligações elétricas, retirava o espelho retrovisor e não mexia mais nada! Ah! Caso ainda não tenha sido feito, iria fazer um “tratamento” ao interior do depósito de gasolina. Sem andar a “inventar” ia logo, por exemplo, para a solução da Restom.
O facto de já ter Documento Único, só a torna ainda mais interessante. São inúmeros os casos em que a dificuldade (de chegar ao nome do proprietário, questões de partilhas e habilitações de herdeiros, ausência de documentos, de chapa de matrícula camarária…) inviabilizam a sua legalização ou levam a soluções de recurso do género de “não bater a bota com a perdigota” e mais não escrevo!
A título meramente informativo lembro que na SIS, nesta época, era prática habitual o n.º do quadro, elemento que pode ser crucial para a atribuição da nova matrícula, estar situado na escora traseira, na ponta do lado esquerdo, onde aperta o veio da roda traseira, ou seja, perto do afinador/esticador. Fica a dica.
V5: uma história de (muitos) sucessos
Mesmo na década de 70 a nossa rede viária era bem diferente daquela que temos atualmente e o que era exigido a estes pequenos motores significava que tinham mesmo que ser muito resistentes, suportando as maiores dificuldades, inclusive na competição, fosse em gincanes, motocross ou qualquer outra atividade mais ou menos desportiva.
Para agudizar o problema, a gasolina, ainda que com chumbo, nem sempre era de fiar e o choque petrolífero (meados da década de 70) veio agudizar o problema do combustível adulterado. Apesar disso, talvez o maior perigo para estes motores (e todos os outros a 2 tempos sem bomba de óleo automática) fosse o óleo de mistura!
Existiam as célebres “bombas misturadoras” e nunca se sabia exatamente o que ia lá ou a percentagem! Tanto podia estar a 2 como a 4 ou 6%! Tanto podia ser óleo de qualidade como umas borras quaisquer! Para piorar, a opção de fazer mistura em casa nem sempre era viável! Nem mesmo as bombas em que despejavam a gasolina e depois perguntavam que percentagem de óleo queríamos e vertiam lá para dentro eram de fiar!
Aliás, era um problema tão transversal, mais ainda nos ciclomotores “com escape para cima” que, no caso da SIS eram a TC e depois a RE, mas noutras marcas podiam ser Enduro, Cross, FX, Trail, Rally, XT… que era comum os restos da má combustão acabarem na roupa sendo praticamente impossível a sua remoção por completo, mesmo com a aplicação de doses massivas de detergente da loiça!
Se para nós já era mau, para a namorada, amiga, esposa… as manchas de óleo, bem negro, eram uma verdadeira maldição e a solução passava, muitas vezes, por optar por um escape por baixo ou fazer-lhe um inestético prolongamento para empurrar os ditos gases para mais longe!
A tudo isso a V5 ia sobrevivendo e progredindo. Nem mesmo a feroz concorrência, por exemplo da XF-17, a conseguia derrubar. Aliás, nem o facto do seu excelente motor estar disponível na concorrência, caso da EFS (Eurico Ferreira Sucena) com a sua lindíssima Formula 1 a abalava. Ainda assim, a SIS não caiu no erro de dormir sobre os resultados que estava a conseguir, seja em termos desportivos, seja em termos de vendas e foi-se sempre atualizando, na medida do possível.
Ao longo da sua bonita vida existiram muitas denominações diferentes. Que me lembre, não considerando já as duas anteriormente mencionadas, tivemos Sport, TopRacing, Motozax, Lotus (e Lotus Export e Lotus V5 Sport), Fuego… existiam versões carenadas, algumas com refrigeração a ar e outras a água e até uma V4 cuja diferença mais óbvia era ter apenas 4 velocidades.
Os motores foram sofrendo alterações nos cárteres, na parte elétrica, nos cilindros, na caixa de velocidades, mas a mística ia ficando, mesmo com problemas mais ou menos crónicos como a cruzeta da caixa de velocidades ou a irritante tendência para o retentor do veio da caixa de velocidades começar a deixar passar o óleo que vinha depois sujar as calças e calçado do lado do pedal das mudanças, da qual também fui vítima…
Partilho ainda fotos de um exemplar bastante alterado, nomeadamente ao nível do motor (neste momento estava no sr. Dr. para ganhar uma nova vida, talvez com um novo coração) e, mais ainda, ao nível de alguma estética e do sistema de travagem.
Na génese temos, aparentemente, uma Lotus V5 Special, mas mesmo a olho nu há um pormaior que se destaca: o sistema de travagem! Chegou a existir uma versão Lotus com 2 discos à frente, mas aqui foi-se mais longe: 2 discos à frente e 1 atrás com bomba de travão do fabricante Espanhol AJP (não confundir com a marca nacional AJP Motos).
O cilindro deve ser gigante (a própria Sachs comercializou um 75 e outro 80 cc, mas é possível ir ainda mais longe), tal como o carburador e os amortecedores traseiros que nada têm a ver com o original, o mesmo ocorrendo com o guiador ou o espelho retrovisor. Bonito? Feio? Atentado motociclístico? É para mim irrelevante! O mais importante é que esteja ao gosto do proprietário! Ainda tem o bónus de ser um exemplar único e há um trabalho soberbo de polimento nos cárteres e tampas do motor!
Para terminar, a V5 é um veículo sobre o qual também há imensa informação disponível, foi amplamente utilizado pela PSP, sendo ainda muito comum e a informação relativamente acessível (algumas peças é que já nem tanto) e até foi imortalizada num selo dos CTT. Alguns pontos de acesso sobre a família V5:
Revista Só Clássicas, número 85;
Motos de Portugal: uma verdadeira base de dados. Incompleta, mas com muita informação;
SóClássicas: blog incontornável pela qualidade, quantidade e diversidade da informação;
Motorizadas 50: mais um ponto de acesso para informação sobre a V5 e não só;
Motas Clássicas: Muita informação no global, incluindo fotos;
Rodas de Viriato. Blog com imensa informação sobre todas as nacionais.
Para o próximo número vamos debruçar-nos sobre mais uma das várias 50 nacionais que fez e faz furor. Só posso adiantar que a marca começa por um M! Esperem pela próxima sexta-feira!
Texto: Pedro Pereira