Nota Introdutória:
A nossa máquina do tempo continua de boa saúde e a trazer-nos magníficas recordações. As décadas de 70, 80 e 90 foram realmente muito especiais para os veículos de duas rodas nacionais, e aquele que vos apresentamos hoje é disso mais um bom exemplo, com a aliciante de ser das marcas mais antigas de todas, tendo completado o seu centenário em 2021.
Assim, o fabricante escolhido dispensa grandes apresentações e verificamos, com alegria, que muitos dos seus produtos continuam a circular e a ser alvo de recuperação e restauro, mesmo que não tenham a aura de alguns dos seus concorrentes. A escolha do modelo foi mais complexa, mas já lá vamos…
Refiro-me à Macal – Manuel Caetano Henriques e Companhia Lda. Foi este homem, alfaiate de profissão, que esteve na génese da marca, no já longínquo ano de 1921, embora inicialmente ligado às bicicletas, tendo a entrada no mundo das duas rodas ocorrido já no pós segunda guerra mundial…
Aliás, entre os dias 5 e 19 de setembro do ano passado, em Águeda, foi feita uma grande festa de celebração dos 100 anos da Macal. Não tive oportunidade de estar presente na exposição, mas consta que foi mesmo imperdível e este vídeo do Jornal da Bairrada mostra isso mesmo, até pela riqueza e diversidade de modelos apresentados. O facto de o cicerone ser Ernesto Caetano, torna o vídeo ainda mais especial.
Durante grande parte da sua existência a Macal, apesar de ser um gigante industrial, centrava-se mais na produção de peças para os veículos, caso de quadros, suspensões, guiadores, escapes ou cubos para rodas (ainda hoje muito apreciados).
Mesmo quando começou a vender motos completas era mais um “montador” já que não desenvolvia ou construía motores próprios e acabava, na prática, por os comprar oriundos de muitas outras marcas. Penso até que ganha o título de “rainha da promiscuidade”, tal a diversidade de motores utilizados: Rex, Flandria, Zundapp, Casal, Sachs, Honda (4 tempos), Puch, Yamaha, Morini, Minarelli…
Aliás, foi este último que deu uma grande ajuda à marca quando conseguiu negociar diretamente com o fabricante italiano Motori Minarelli, que era um grande colosso industrial em Itália, e permitiu à Macal ter acesso a material que mais nenhum outro fabricante tinha, nomeadamente para competição (enduro, motocross, velocidade…). Tal apenas ocorreu porque a EFS (Eurico Ferreira de Sucena, fundada em 1910) não chegou a acordo com os italianos, deixando a porta aberta à Macal.
Já na última década do século passado a Macal (já com a designação Macal Husquvarna), sempre muito dada à inovação e ligada à competição, ainda conseguiu lançamentos muito interessantes, caso de uma 125, em parceria com a Minarelli e a Yamaha (modelo Dakar), várias scooters (CY50 e MY50) e muitos sucessos a nível desportivo, mas as dificuldades eram visíveis e o fim adivinhava-se.
Ainda foi alvo de uma reestruturação e até efetuou um “regresso às origens” com a produção de bicicletas Bugas (Bicicletas de Utilização Gratuita de Aveiro), mas já nada havia a fazer e a falência acabou por ser o desfecho inevitável, já em 2004.
Fechou-se assim mais um capítulo glorioso da gloriosa indústria das duas rodas no nosso país. O facto de a Família Caetano ainda estar ligada à marca (além de Ernesto Caetano também o filho André Caetano, bisneto do fundador) mantém a esperança de que não se perca, como aconteceu com outras marcas, uma parte importante da história do nosso país.
Quanto à falada criação Macal 100, prevista para honrar os 100 anos da marca, não sei mais nada de concreto, mas gostava que se tornasse realidade, mesmo sabendo que se forem comercializados apenas 100 exemplares… vai ser delicado conseguir um, além de que o preço final não será certamente simpático.
N.º 5: Macal M70
Em número de vendas é possível que a Macal tivesse alguma dificuldade em competir com as marcas que mencionámos anteriormente pelo facto de ter lançado imensos modelos, levando a uma maior dispersão. Tendo presente que mantenho o propósito de me centrar sempre um modelo específico e que tenha sido popular, a escolha recaiu (inevitavelmente) sobre a M70!
Nos 4 casos anteriores os modelos, com mais ou menos evoluções, assentaram sempre sobre um único motor, mas aqui a situação é totalmente diferente. Acresce ainda que, por ignorância ou criatividade minha, imaginei que o número 70 dissesse só respeito à década de produção, mas não é bem assim!
A designação M70 começou, ao que consta, na década de 70, mas estendeu-se pela de 80 e, em menor número, chegou ainda à década de 90! De tal forma que, de acordo com os dados que recolhi, sob a designação M70 terão saído das linhas de produção (para consumo nacional e exportação) mais de 15.000 unidades, o que representou um valor muito significativo para a marca e para um país minúsculo como o nosso, rodeado de gigantes na indústria das ruas rodas, casos de Espanha, França e, sobretudo, Itália.
A que vos destaco neste número (mais uma vez, obrigado Esteves) é um bonito exemplar da altura da Revolução de abril, equipada com o mais que conhecido “Zundapp 4 de turbina” e que continua a cumprir! É incrível como, mesmo na atualidade, ainda existem kits completos para quem quiser “vitaminar” este motor, caso do conjunto da Athena.
Este motor foi tão importante e utilizado no nosso país que quase merecia um artigo só para ele, mas vai contra a minha orientação de crónicas e ia deixar invejosos muitos outros motores! É um motor muito simples (inclusive de reparar), mas de construção robusta e capaz de suportar maus-tratos como quase nenhum outro! A pequena turbina, diretamente ligada à cambota, permite-lhe uma eficaz refrigeração por ar forçado, mesmo nas condições mais difíceis de utilização.
Foi usado em muitos modelos e marcas, incluindo os tricarros (vulgo triciclos), verdadeiras “ratoeiras andantes”, dada a facilidade de capotarem (não faço comentários), mas com uma capacidade carga incrível, incluindo passageiros. Alguns de vós devem recordar-se de andarem sentados na caixa e até havia quem lá colocasse um pequeno sofá ou cadeiras…
A própria Casal chegou a construir um motor bastante parecido ao Zundapp de 4 para equipar os seus modelos (M152). Pelo que me foi dito, a principal diferença acaba por ser mesmo ao nível do seletor/caixa de velocidades. A olho nu, tirando as inscrições nas tampas, são praticamente iguais…
Voltando ao modelo de honra desta crónica está realmente muito bonito, com o habitual destaque para o logotipo da marca e as decorações laterais do depósito e das malas, sempre com a inconfundível estrada, com curvas e a linha da meta, “cortada” pelo símbolo MACAL. Um verdadeiro clássico, intemporal como muito poucos, fruto da genialidade da equipa chefiada por Isaac Caetano.
Num olhar mais atento percebe-se que não está completamente fiel ao original como ilustra, entre outros, o guarda-lamas da frente. O que lá está resulta bastante bem, talvez até melhor que o de origem, mas veio de outro lado! Mais uma vez, a mim não me choca nada e até aprecio, mas a alguém mais purista pode desagradar e coloca em casa a fidelidade ao modelo original. Pormenores…
Assisti à entrega ao seu novo dono, um jovem ainda com borbulhas no rosto, e não posso negar que me senti feliz! Era uma antiga “glória de família” e que vai ser entregue a um apreciador da nova geração. Serão eles o futuro destas máquinas gloriosas, sobretudo à medida que as gerações que com elas viveram forem envelhecendo e partindo, que é o curso natural da vida…
M70: a riqueza da diversidade
Cada vez se fala mais de diversidade e ainda bem! Valorizamos, mais do que nunca, o que é diferente, que foge ao convencional e a M70 ilustra isso muito bem!
Ao longo da sua longa carreira, começada no início da década de 70, na sucessão da linha M50, sofreu várias alterações mais ou menos profundas, teve várias designações como M70 Sport (talvez a mais desejada nos dias de hoje) M70 Luxo, M70 Turismo, mas o que realmente a carateriza é a diversidade de motores que albergou.
No motor Zundapp 4 é de destacar o número elevadíssimo das que continuam a circular nos dias de hoje, muitas sem qualquer restauro, tirando ao nível das inevitáveis reparações mecânicas. Continuam a ser um veículo de trabalho para muita gente, algumas até com o tradicional cesto de verga atrás ou mesmo um duplo, tipo alforge (vulgo ceirão) que servia para transportar bilhas de gás, ferramentas, produtos agrícolas, compras de supermercado e, porque não, um ou vários garrafões de vinho!!!
Aparte este Zundapp 4, também por lá passaram muitos outros. É o caso do Zundapp de 5 velocidades (que equipava, por exemplo a XF), motores Casal (de 4 e 5 velocidades), Sachs (incluindo o da V5), Puch (muito raros), Honda (H5) e, sobretudo na década de oitenta em diante, Minarelli.
Destaco o motor Honda (oriundo da SS 50), com caixa de 5 velocidades, por ser diferente de tudo o resto! Era a 4 tempos, e tinha o cilindro em posição horizontal (melhor refrigeração por ar).
Quando tive oportunidade de testar uma, já lá vão uns anos, fiquei completamente rendido! Pedal do lado “certo” (à direita), uma caixa que envergonhava as nacionais pela precisão e suavidade, consumos de passarinho (e sem óleo de mistura), fiabilidade muito elevada e até o cantar do motor era agradável. Escusado será dizer que as prestações do motor ficavam abaixo de um motor equivalente a 2 tempos, mas aqui não há milagres!
Que pena a Macal não ter feito mais associações com a marca nipónica, nem que fosse em ligação com a parceira espanhola Montesa que ainda há 2 anos completou 75 anos de vida! Podia ter estado aqui uma oportunidade de ouro para a empresa!
Voltando à “nossa” M70, a década de 80 foi de grande dinamismo para a Macal, nomeadamente da vertente desportiva, mas o símbolo M70 era um íman e marca vencia nas pistas e circuitos e nas vendas no mercado nacional e de exportação! Existiu também, por exemplo, uma M80, um M82, uma M83, mas nenhuma conseguiu igualar as vendas da família M70.
De destacar que a associação à Minarelli, que já mencionámos antes, continuou a dar bons frutos. Os motores eram (e continuam a ser) bastante rotativos e adaptavam-se bem à filosofia da marca, havendo motorizações sem mudanças, de 2, 3 4, 5 ou 6 velocidades o que permitia à marca ter um largo espetro de modelos e assim chegar aos diferentes nichos de mercado. Além disso, a caixa era muito precisa, melhor que a das suas concorrentes nacionais…
Como o colosso italiano tinha uma estreita ligação à competição e o “País da Bota” era e continua a ser o grande fornecedor de material para “preparar” motores, com marcas como a Athena, Polini, Metrakit, Malossi, Dell’Orto, Ducati (eletrónica, não confundir com a marca de motociclos de Bolonha) … melhor ainda!
A esse respeito, destaco também os motores Minarelli Corsa Corta (curso curto) que pouco tinham a ver com os populares P6R. Basta pensar que o curso se reduzia 42 para 39, o diâmetro do pistão subia de 39 para 40,3 ou o carburador passava a ser um Dell’Orto 26 em vez do tradicional 19. São motores ainda hoje muito valorizados e a performance é brutal, seja em motos de estrada, motocross…
Apresento ainda um exemplar de uma M70 (obrigado P. Pereira) cujo grande destaque vai obviamente para o motor. Basta olhar para o cilindro e para o carburador (aquele filtro vermelho gigante pode ferir um pouco a visão), mas o resultado em termos de prestações puras é mais que convincente.
Não tive oportunidade de a experimentar (estava em fase de afinação), mas pelo que me foi dito as prestações atuais do motor nada têm a ver com as que tinham originalmente. De um motor bem-comportado, mas algo limitado, temos agora algo completamente diferente, muito mais agressivo e até capaz de causar sustos já que a ciclística tem dificuldade em acompanhar o resto. Do “escape de rendimento” não há muito a dizer. Sabemos que grita furiosamente a qualquer golpe de acelerador!
Como habitualmente, temos também muita informação sobre a Macal em geral e a família M70 em particular, mas deixo alguns pontos de acesso que podem servir como referência. Destaco, em particular, para o último. Trata-se de uma tese de mestrado focada no design, mas é uma excelente fonte de informação para as diferentes marcas e está disponível online:
Revista SóClássicas: n.º 30, história da Macal: da Cliper à Minarelli;
Revista SóClássicas: n.º 64, com destaque às carenadas nacionais, caso da PRE 50 Troféu;
Motos Macal: página “institucional” na rede social Facebook;
SóClássicas: blog incontornável pela qualidade, quantidade e diversidade da informação;
Motasclassicas: a riqueza de imagens é incrível e uma verdadeira viagem no tempo. Várias marcas;
Motorizadas 50: o nome diz tudo. O nome Gustavo Pinto é uma referência;
Rodas de Viriato. Blog com imensa informação sobre todas as nacionais
Tese de Mestrado: Susana Gonzaga (2006), na Universidade de Aveiro.
Para o próximo número vamos debruçar-nos sobre mais uma das várias 50 nacionais que fez e faz furor, mesmo que as performances sejam algo modestas. Só posso adiantar que é uma espécie de Líder ou Patroa! Esperem pela próxima sexta-feira!
Texto: Pedro Pereira