Nota Introdutória:
Como previsto, a semana passada abordámos, pela primeira vez, um modelo da histórica Triumph, neste caso a Speed Triple 900. A moto desta semana, a primeira escolhida com a cilindrada de um litro, é uma moto muito especial para quem gosta de viajar, mas é muito mais que isso. Com esta moto, lançada logo na primeira metade da década de 70, a Honda mostrou bem porque era o primeiro construtor mundial e a GL foi mantendo um estatuto ímpar, geração após geração!
Logo quando chegou ao mercado, no ano de 1975, já vinha com o rótulo de que a “Asa Dourada” iniciava uma nova era no touring e não era mentira nenhuma! É mais um daqueles modelos que ficam para história uma vez que existe o antes e o depois!
Vamos agora contextualizar um pouco para se perceber a real influência deste modelo e como a marca japonesa teve mais uma jogada brilhante, capaz de reforçar o seu prestígio e deixar a concorrência, sobretudo a europeia e norte-americana, ainda numa situação mais delicada do que já estava.
Com o lançamento da família CB Four ainda no final da década de 60 (recordam-se da crónica da CB 500?) A marca percebeu que podia ir mais além e criar uma moto mais especial, algo que ainda não existisse no mercado e que fosse especialmente dedicado a grandes viagens, com muito conforto para condutor e passageiro e até algum luxo.
O próprio mercado prioritário já estava identificado: Estados Unidos! Um país gigante, com um nível de vida elevado, ótimas estradas e gente que adorava motos!
Se duas décadas antes, a partir de 1958, a marca tinha dado um passo gigante no mundo das duas rodas nos EUA com a sua Honda 50 (Cub e Super Cub) agora era altura de subir a fasquia e tinha que ser feito de forma determinante, capaz de enfrentar toda a concorrência, nomeadamente das populares e nacionais Harley Davidson e Indian ou das “alternativas” europeias da BMW ou da Moto Guzzi!
A ideia foi confiada a uma equipa liderada pelo genial Shoichiro Irimajiri que, a partir de 1972, ficou com a responsabilidade de criar algo verdadeiramente especial, como fez também com a CB X 1000, e não falhou!
No Salão de motos de Colónia, realizado em setembro de 1974, a Honda deixou meio mundo de boca aberta, apesar de até lançar outros modelos interessantes nesse ano, caso da CB 400F. A GL era a rainha do certame e vinha com uma série de predicados que nenhuma marca/modelo tinha até à data, apesar de uma estética algo polémica!
Logo para começar, era o primeiro motociclo japonês com refrigeração líquida de série! Uma grande novidade, mas havia muito mais, caso de um motor de 4 cilindros do tipo boxer, com algumas semelhanças ao da BMW, mas com o dobro de cilindros e também transmissão por veio e cardã!
A nova moto era imponente, quase gigante e veio a mostrar-se rápida, fiável, capaz de grandes viagens com um conforto acima da média, apesar de nessa altura ainda ser completamente “naked”, não oferecendo nenhuma proteção para viajar ou condições específicas para o transporte de carga, mas os seus compradores, ainda antes da marca, começaram a resolver esse problema!
A sua popularidade crescia, sobretudo nas Terras do Tio Sam e os seus donos começaram a equipá-la com malas laterais, ecrãs dianteiros, apoios para as costas do pendura (sissy bar) e tudo o mais, de modo que a moto se pudesse vir a tornar numa touring de eleição, uma pura devoradora de km’s ou milhas (mile muncher).
Estava assim dado o primeiro passo num modelo que continua a sua carreira evolutiva até aos nossos dias e com lugar cativo no catálogo da marca, mas veja-se um pouco da sua evolução até à atualidade:
N.º 34: Honda Gold Wing GL 1000
Nesta primeira fornada a moto era mesmo muito além de tudo o que existia e o conjunto dos seus atributos faziam dela uma moto realmente única e peculiar, sobretudo para quem queria viajar sem fronteiras.
Os seus 4 cilindros opostos somavam 999 cc, com apenas uma árvore de cames por bancada de cilindros e duas válvulas para cada cilindro. Os seus cerca de 78 cv às 7.000 rpm podiam nem impressionar muito, mas o binário gigante de 83 nm, obtidos logo às 5.500 rpm garantia-lhe acelerações rápidas e uma capacidade incrível para deslocar os seus quase 280 kg a seco, onde se incluía um pequeno depósito de gasolina com apenas 19 litros de capacidade! Manifestamente pouco para esta viajante de eleição que gostava de gasolina, como era comum na época!
Já vinha equipada com duplo travão de disco à frente (discos de 232mm com duplo pistão) e atrás um disco simples maior de 250 mm. Claramente insuficiente para os padrões atuais, mas excelente para a época, tal como os pneus com um 3.50/19 à frente e um 4.50/17 atrás que ficavam com a responsabilidade de ligação ao solo de uma moto que podemos classificar como colossal!
Vamos agora focar-nos na moto que serve de modelo para esta semana, não sem antes fazer novo agradecimento ao Octávio por, mais uma vez, ser um elemento precioso e ser dono também de mais este modelo icónico e num estado francamente interessante, mas sem chegar a ser de concurso.
Foi matriculada em 1976, sendo logo da primeira geração e a cor azul, muito popular à época, assenta-lhe bem, tal como os outros padrões em amarelo, preto ou vermelho… aliás, a marca soube usar uma palete de cores bastante diversificada exatamente para conseguir chegar a um leque maior de potenciais compradores e se é verdade que as vendas inicialmente ficaram aquém do esperado a marca soube ouvir os clientes e foi atualizando o modelo.
Na conversa com o dono fiquei a saber algo que já tinha ouvido dizer, mas nunca vira na prática: a Honda GL, além do arranque elétrico, vinha equipado com um sistema de kick, para uma eventual falha no arranque elétrico ou respetivos periféricos. Grandes engenheiros japoneses! Mesmo confiando no que faziam, ainda assim acrescentavam um sistema de redundância para garantir que os donos das suas motos não tinham razões de queixa dos seus produtos
Assim, na lateral direita do depósito existe um compartimento onde está alojado um pedal gigante que depois pode ser colocado na lateral esquerda do motor e assim “tentar” dar vida ao motor dessa forma. Nem sequer me atrevi a tentar! Tudo nesta moto parece sobredimensionado e imagino que acionar o kick starter fosse mais ou menos algo similar! Ainda o instalei no respetivo veio, mas foi apenas para a foto!
Sobre este espetacular exemplar que marca apenas 53.000 km, há por ali alguns detalhes não originais, caso dos escapes (tendem a apodrecer com o tempo) ou os amortecedores traseiros que foram trocados por uns melhores e mesmo o radiador também já foi alvo de melhorias. Afinal de contas, por muito cuidado que se tenha, os mais de 45 anos não perdoam! Nem a nós!
Outra alteração, inteligente e não visível, foi a troca da bateria por uma de lítio! Representa uma poupança significativa de peso, ocupa bastante menos espaço e a durabilidade da mesma é muito superior à original, sobretudo se tivermos em conta que é uma moto que não anda regularmente.
Por falar em andar, ouvir o trabalhar do seu motor, após a temperatura estabilizar um pouco, acaba por ser bastante agradável até porque não há quase vibração nenhuma! Já sobre a sua condução não me manifesto! Apesar de me ter sido dada essa possibilidade acabei por declinar o convite. Já conduzi a geração seguinte e é uma moto que exige alguma técnica e como diz o dono “para curvar… puxa-se”! Fica para outra vez. É maravilhoso termos muitas experiências, mas não significa que tenhamos que as ter todas!
Veio ao mundo como uma moto muito fiável, mas há cuidados específicos a ter antes da aquisição ou para garantir a boa conservação de um modelo destes. Um bom exemplo é que se trata de um motor muito sensível à afinação das válvulas e das correias do motor, mas há mais. Problemas ao nível da ignição, da afinação ou falha dos carburadores, perda de potência de forma inesperada…
Vamos ser claros. A moto, no global, é bastante fiável, mas sobretudo no início era um modelo completamente novo e a própria marca estava a desbravar muito caminho, a testar novas tecnologias, a amadurecer conceitos pelo que faz sentido tomar muito cuidado e fazer com que a moto seja acompanhada por alguém com bons conhecimentos da mesma, sob pena de poderem ocorrer avarias ou falhas que tornem uma moto de sonho… num pesadelo!
Por opção, não me manifesto sobre outras declinações da família GL, nem mesmo a pequena GL 500, já que é praticamente desconhecida no nosso país, sendo um modelo dedicado quase em exclusivo ao mercado norte-americano.
Evolução da Honda GL até ao fim do milénio
Apesar da concorrência não começar logo a apresentar verdadeiras alternativas, a Honda percebeu que era uma questão de tempo e não podia repousar à sombra dos louros conquistados. Assim, mesmo nessa geração, foram sendo feitas várias melhorias na forma e no conteúdo, incluindo ao nível da qualidade de construção e dos acabamentos, mas é com a geração seguinte, a GL 1100 (1085 cc) que chegou ao mercado ainda em 1980 que a afirmação do modelo se generaliza.
Agora já vem equipada com uma série de mordomias de origem, para transporte de carga, comodidades para condutor e passageiro que é tratado como um rei… é uma verdadeira moto de luxo, sendo que a versão Interstate (Entre Estados, numa alusão à capacidade de viagem) e a Aspencade (numa clara referência à célebre e luxuosa estância de ski do Colorado) levaram esse fausto até onde nunca nenhum fabricante de motos ousara chegar!
Já vem com malas de série, proteções de ecrã dignas desse nome, muitas superfícies cromadas, rádio/leitor de cassetes (sim, estamos no início da década de 80), selim independente e com níveis de conforto comparáveis aos melhores sofás… e um motor um pouco mais cheio e redondo, além de mais amadurecido e testado que na geração anterior, a pioneira.
A própria produção, em 1981, cujo mercado preferencial era o dos Estados Unidos, uma vez que absorvia cerca de 80% da produção, acabou por ser transferida para os EUA, mais precisamente para o Ohio (Marysville). A marca assumia, em definitivo, que era uma moto que tinha como destinatário preferencial o consumidor americano, apesar do seu peso, com tanto extra, já ultrapassar os 300 kg, o que era uma verdadeira barbaridade, mas não era entrave ao seu sucesso.
Em 1984 a marca lança a GL 1200 (1182 cc), mas agora a concorrência está mais alerta, nomeadamente a Yamaha com a sua imponente RoyalStar e é crucial ir inovando sempre, sob pena de ser-se ultrapassado pela concorrência. Logo no ano seguinte lança a versão GL1200LTD, já com injeção eletrónica, algo completamente revolucionário à época. Se pensarmos que só neste século a injeção eletrónica se generalizou, percebemos ainda melhor como esta moto era uma verdadeira montra tecnológica e do “saber fazer” da marca.
Depois de muita expectativa, foi em 1988 que saiu o tão aguardado modelo GL1500 (1520 cc), com seis cilindros e “marcha-atrás”, elemento distintivo e importante para uma moto gigante em que as manobras tinham que ser feitas com muito cuidado. O sistema de marcha-atrás, acionado por uma manete gigante do lado esquerdo, próximo do pedal das mudanças, mostrou ser mesmo uma mais-valia importante e seguido depois por outras marcas e modelos.
Foi esta a geração que, em definitivo, globalizou o modelo e lhe deu um charme que poucos modelos ousam sequer sonhar. Mesmo na atualidade é muitíssimo apreciada e a sua qualidade de construção e acabamentos são quase lendários, de tal modo que esta versão, ainda que com melhorias sucessivas, teve uma vida longa e a sua fiabilidade é inquestionável, havendo exemplares com mais de meio milhão de km’s sem grandes problemas.
Mesmo no ano 2000, quando se completavam 25 anos do modelo, os entusiastas esperavam por um novo modelo, talvez com um motor ainda maior, mais tecnologia e conforto, mas não aconteceu… ainda! Na prática, numa altura em que a concorrência era cada vez mais forte, incluindo da BMW com a sua K1200LT, só em agosto de 2000 foi apresentada a GL 1800, cuja comercialização começou no ano seguinte, mas essa história já fica para a próxima!
A maior parte das fontes de informação não são portuguesas, embora o modelo tenha fãs leais em Portugal, apresentando-se agora alguns pontos de pesquisa sobre este incrível modelo e a forma como conseguiu elevar para um nível nunca visto a forma como se pode viajar de moto, com luxos, conforto e comodidades capazes de envergonhar muitos automóveis, mesmo que a preços fora do alcance da maior parte das bolsas.
Ridermagazine: análise detalhada ao historial do modelo;
Oldbikebarn: blog essencialmente dedicado a este icónico modelo;
Thevintageagent: para quem quiser saber mais sobre modelos históricos da marca;
CycleWorld: 40 anos de evolução e está tudo dito;
Goldwingworld: referência obrigatória, para fãs de todo o mundo e com muito humor;
Enginepatrol: menção aos problemas mais comuns do modelo e soluções para os mesmos;
Goldwingowners: um dos vários fóruns dedicados ao modelo.
Para o próximo número vamos manter-nos esta cilindrada! Informo desde já que não vai ser uma desportiva a escolhida e vamos regressar à europa. Uma moto marcante, sobretudo por causa das linhas futuristas e da preocupação com a aerodinâmica, e que nem sequer foi um grande êxito comercial, embora se encontre com facilidade no nosso país. Qual será a moto? Até sexta-feira!
Texto: Pedro Pereira