Nota Introdutória:
Depois de na semana passada termos abordado a Vespa GTR 125, como previsto, voltamos agora a dar o merecido destaque a uma produção nacional na categoria das 125. Trata-se de um modelo cada vez mais acarinhado e apreciado no nosso país, o que leva a que os projetos de restauro e recuperação sejam cada vez mais delicados, uma vez que a escassez de algumas peças é uma realidade cada vez mais incontornável.
Como bem sabemos, existiram milhares de pequenas empresas em Portugal, incluindo nos Açores e Madeira, que comercializavam e reparavam veículos de duas rodas, incluindo bicicletas, mas também máquinas agrícolas e florestais e, em muitos casos, até máquinas de costura!
Uma boa parte delas foi fechando as portas, os recheios das mesmas foram desaparecendo e, na atualidade, encontrar algumas peças novas para este ou aquele modelo é um puro golpe de sorte, até porque as pequenas empresas do ramo que ainda subsistem já devem ter sido todas “visitadas” por pessoas em busca desta ou daquela peça, o que não invalida que não existam ainda tesouros por descobrir.
Por outro lado, há várias pessoas que compraram o “recheio” dessas pequenas lojas (conheço vários casos) e agora têm um stock de peças, motores e até motos completas de fazer inveja. Podem chamar-lhe açambarcadores, saudosistas, visionários, mas o facto é que foi melhor que condenar essas glórias ao ferro velho ou ao simples desmantelamento. Naturalmente que a venda das mesmas, na Internet ou feiras da especialidade, é condicionada pela escassa oferta, podendo em alguns casos os preços parecer absurdos, mas é o que há.
Ainda sobre o modelo desta semana convém destacar que foi muito popular nos CTT, em especial para as entregas de comunicação urgente, os populares telegramas. Quando deixaram o ativo – eram centenas – temo que a maior parte ou mesmo a totalidade tenham sido simplesmente destruídas e custa-me só de imaginar a situação…
Ainda antes de falar sobre a Casal K276 é importante destacar que não foi este o primeiro modelo nesta cilindrada da marca. Aliás, João do Casal, como visionário que era, percebeu cedo o potencial que existia em subir de cilindrada e até existiram planos, nunca concretizados, de comercializar motos de 250 cc ou mesmo 500!
A primeira 125 da Casal era denominada por K260 e era, efetivamente, um produto nacional. Destaque para esta reportagem do Jornal MotoNotícia, aqui citada por Gustavo Pinto. Este artigo é um manancial de informação e descreve na perfeição a moto, enaltecendo as virtudes da primeira “motocicleta” nacional que chegou ao mercado em 1972, embora os planos de construção tenham tido início ainda na década de 60.
Menciono apenas alguns destaques: caixa de 5 velocidades, mistura a 4%, pesando menos de 100 kg e capaz de uma velocidade máxima (julgo que algo otimista) de 120 km/h! Na atualidade é uma verdadeira raridade até porque foram produzidas poucas. Ao que consta, apenas algumas centenas. Destaco ainda que saltam à vista as semelhanças com a Casal K181, esta sim uma 50 cc bastante popular e cuja produção se iniciou ainda no final da década de 60…
A produção seguinte da Casal foi a K270. Faço um novo destaque para o Gustavo Pinto e publico aqui a referência à análise detalhada que fez ao modelo. Ao contrário da K260 esta foi bastante popular e até produzida em quantidades significativas, algo como quase 10.000 exemplares, incluindo algumas para exportação.
Começou a comercialização logo após ter sido retirada do mercado a K260 e vendeu-se praticamente durante toda década de 70. Finalmente, começa agora a ser procurada e apreciada, mas obviamente que nunca terá o destaque da “pioneira”. De vez em quando ainda encontro uma ou outra a circular sem qualquer restauro, o que é para mim motivo de satisfação e mostra bem a resistência da mesma. As de cor azul são bastante comuns, as vermelhas uma raridade. E desconheço outras cores.
Inclusive, troquei umas impressões com o dono de uma (já relativamente idoso e que a comprou nova por uns 30 contos). Informou-me que ainda hoje gosta de a conduzir, sendo que continua a andar esporadicamente com ela, mas é o primeiro a apontar-lhe vários defeitos que vão desde os consumos ou a caixa muito dura e pouco precisa. Não considerando as normais peças de desgaste/consumíveis, apenas foi trocado pistão, segmentos, discos de embraiagem e o carburador! Nada mau!
N.º 8: Casal 125 K276
Depois da K260 e K270 fazia sentido uma moto de aspeto mais aventureiro, capaz de algum fora de estrada e, porque não, até com reais possibilidades de participar em provas de motocross, muito populares na época, de Norte a Sul do país.
Porém, um projeto desta natureza implicava outros recursos, nomeadamente do ponto de vista técnico, que não existiam no nosso país, pelo que fazia todo o sentido procurar ajuda além-fronteiras e foi isso que aconteceu, sendo que a escolha recaiu sobre Itália, mais precisamente sobre a Villa.
Ao que consta, não terá sido muito difícil chegar a um acordo com os irmãos Villa e, desse modo, foi possível iniciar a produção, em solo nacional, de uma simpática trail que ia buscar grande parte da sua inspiração à moto italiana. Aliás, o seu grande problema terá sido o “excesso de inspiração”.
A “transformação” da Villa na K276 (o 6 deve-se ao facto de ter caixa de 6 velocidades) foi demasiado fiel ao original e converter uma pura moto de motorcross numa trail não pode ser apenas fazer umas alterações de pormenor e aplicar uma (má) instalação elétrica.
Aliás, nos meados da década de 70, a Casal chegou a ter uma K275, modelo de motocross, sem matrícula, que esteve na génese da K276 e era uma “pura” Villa, mas que devia ter servido para na Metalurgia Casal perceberem que muita coisa havia a alterar e não o fizeram, infelizmente.
Para agudizar, quando a Casal iniciou a produção (final da década de 70) o projeto da Villa já estava mais que ultrapassado (em termos de ciclística, motor, posição de condução, equipamento…) e muito longe da concorrência, com especial destaque para as produções do Sol Nascente que agora começavam a chegar ao nosso país.
Apesar de todas as suas virtudes, incluindo o preço mais acessível, estava muito longe de uma DT 125, uma Suzuki TS 125 ou uma Kawasaki KS 125, só para dar alguns exemplos de motos da mesma categoria e que até já estavam há mais tempo no mercado. Dois exemplos dessa “inferioridade tecnológica” são a inexistência do autolube e a caixa de velocidades pouco precisa, mas a lista poderia ser bem mais extensa…
Além disso, existiam muitas outras singularidades que a tornavam uma moto bastante delicada. A posição de condução é boa, mas a moto é alta e curta, o travão dianteiro é insuficiente (mesmo fazendo uns rasgos nas maxilas pouco melhora), o motor vibra bastante (a sonoridade é bem agradável) e os consumos, geralmente acima dos 6 litros, não são muito apetecíveis, tal como a má iluminação ou a fragilidade crónica de algumas peças, caso dos piscas, como vamos ver.
Apesar disso tudo, a K276 vendeu e de que maneira! Os números conhecidos apontam para mais de 15.000, incluindo as que foram montadas pela Fundador, em Sangalhos, cuja diferença óbvia é a indicação Fundador no depósito e logotipo da marca na traseira do selim, bem como as malas laterais com uma decoração própria. Todo o resto é mais ou menos a mesma coisa!
Curioso que, ao que apurei, existiu apenas em duas cores: vermelha com letras brancas e branco com letras e detalhes em azul (mais rara). Naturalmente que podemos encontrar outros padrões de cores, mas devem-se provavelmente à criatividade dos seus proprietários que decidiram ter uma K276 única e assim fugir aos cânones habituais.
Ainda um destaque para a J. Amorim, empresa ali das bandas de Sintra que, no início da década de 80, produziu um número significativo (hoje raríssimas), tendo por base a K276, mas com um aspeto bem mais endurista e moderno. O motor era o mesmo, mas a ciclística bem melhor e a estética muito mais vistosa e agradável. Quase que me atrevo a escrever que esta deveria ter sido a moto que a Casal poderia ter construído.
Consta ainda que existiu uma versão de exportação, já com refrigeração líquida e uma estética mais atual, mas não tenho dados para o confirmar, um pouco na lógica da RZ 125 (ver crónica 2 sobre a Casal RZ 50). A própria AJP, de que já falámos antes, teve como modelo inicial uma 125, a Ariana, com motor Casal.
Ainda sobre a K276 importa dizer que muitas foram “aproveitadas”, em especial os motores, para fazer “adaptações” para motos de cross, apenas com o objetivo de puro divertimento dos seus proprietários, muitas vezes apenas na lógica de “andar até partir”, aproveitando peças de várias origens (quadros, suspensões, motores, plásticos). O resultado foram certamente muitas horas de divertimento, mas também uma maior escassez de material para o modelo.
O exemplo de um restauro de uma K276
As principais fotos desta crónica são oriundas de uma Casal K276 montada pela Fundador no ano de 1982 e que depois de muitas peripécias conseguiu ganhar uma nova vida num processo longo e complexo, mas em que as fotos falam por si.
Era uma espécie de “sonho da infância”, mas que só décadas mais tarde foi concretizado. Quando foi comprada tinha um aspeto aceitável e vinha acompanhada de uma caixa de cartão com outro motor lá dentro, mas nestas coisas só se sabe a verdade quando se mete “as mãos na massa”!
Há tendência para haver surpresas e geralmente não são boas! Já se sabia que a ponteira não era original, que não trazia manómetros, só tinha um pisca inteiro ou que faltava a caixa de filtro de ar, mas o pior veio a seguir: pistão para o lixo, cilindro riscado, discos de embraiagem inúteis, tal como a cremalheira de embraiagem ou a parte elétrica e muita ferrugem, nomeadamente ao nível do selim e guarda-lamas.
A maior parte do trabalho foi feita pelo F. Nunes do Clube Casaleiros e foi um desafio tremendo: desmontar tudo (com o cuidado de ir tirando fotos), depois trabalhos de decapagem, bate-chapas, pintura, encomendar autocolantes à Luzicor, peças para cromar… O selim, depois de refeita a estrutura, foi enviado à Sibanel com fotos, e foi estofado com o mesmo logo atrás, mas não conseguiu aplicar as letras 125 na lateral do mesmo que existiam no original. A não inclusão da tradicional fita de couro a meio do selim foi um pedido do dono.
A instalação elétrica teve que ser feita de raiz pois vinha em estado miserável e foi outro quebra-cabeças, mas como foi possível obter os manuais da moto… podia ter sido pior! Ao menos as bainhas da suspensão (neste caso Marzocchi e não Betor) estavam num estado bastante aceitável, tal como os amortecedores traseiros, mas há sempre trabalho a fazer, nem que seja apenas mudar óleo e retentores.
No caixote “suplente” de peças de motor vinha uma cremalheira de embraiagem e um ótimo cilindro, mas continuava a faltar muita coisa, caso de uns discos de embraiagem em bom estado ou pistão de jeito, já para não falar na complicação que é conseguir uns piscas originais e completos. Partem-se quase só de olhar para eles e serem rígidos só agudiza o problema! Bem que a SIM (Sociedade Irmãos Miranda) os podia voltar a produzir. Fica a sugestão!
Os manómetros vieram de uma mota “dadora” e, curiosamente, tinham conta rpm, algo que saiu em pouquíssimas K276! Encontrar uns “cepos” para os comandos da embraiagem e acelerador foi outro problema, mas com tempo e muita pesquisa tudo se foi conseguindo, além da solidariedade motard também funcionar em várias ocasiões.
Nova dor de cabeça para o escape! Foi encontrado um, mas o dono só o vendia completo (balão, ponteira e grelha) e o preço era escaldante, mas depois aproveitou-se o velho, deu-se uma boa decapagem, pintura e foi vendido. Aliás, mesmo agora as peças sobrantes de restauros continuam a ter bastante mercado, ajudando a venda a equilibrar os custos!
Quando finalmente a K276 ficou pronta a alegria foi enorme e mais que justificada! Claro que demorou mais tempo que o previsto e os custos, como é habitual, vão sempre para além do expetável. Fazendo a metáfora, estamos em Portugal e se não houver derrapagens… já não é a mesma coisa!
Por gosto meramente pessoal foram colocadas umas verdadeiras rodas de tacos (sendo as rodas de 18 e 21 polegadas há muito por onde escolher), mas o risco, sobretudo com piso molhado, é enorme! A K276 já é conhecida por ter uma arquitetura que não ajuda, o travão dianteiro é mesmo mau e apesar de ter apenas uns modestos 14 cv, o facto é que uma eventual queda é sempre dolorosa e mesmo que não cause ferimentos ao seu condutor… basta partir 1 ou 2 piscas para ser uma chatice!
Mais uma vez, a informação sobre a K276 continua a ser abundante, as peças é que não tanto, tal como já referimos antes, mas pode-se acrescentar à lista as malas laterais, frágeis e cada vez mais difíceis de encontrar. Vamos então mencionar algumas referências com informação sobre este bonito motociclo e que marca a despedida nestas crónicas das produções nacionais e até teve direito a um selo dos CTT para a imortalizar:
Revista SóClássicas: n.º 22, destaque à K276;
Revista Motos Clássicas & Vintage: n.º 17 dedicado à Casal K276;
Clube Casaleiros: blog com muita informação, sobre todas as Casal;
Motorizadas Portuguesas e Carros Clássicos: Página do Facebook com muita informação;
Old Moped: de Carlos Martins, muito material e informação;
Motorizadas 50: de Gustavo Pinto, grande dinamizador das máquinas nacionais. Incontornável;
Portal dos Clássicos: muita informação. Aqui o exemplo de um restauro completo.
Para o próximo número vamos continuar nas “oitavo de litro”. Porém, vamos para o país do Sol Nascente. Uma 125 que foi bem popular no nosso país e durante bastante tempo, existiu com carenagens e numa versão despida, vulgo naked. Resta aguardar pela próxima sexta-feira!
Texto: Pedro Pereira