Nota Introdutória:
Como previsto, a semana passada fechámos a categoria de 750 cc com a XTZ 750 Ténéré, uma moto com um rico historial que ainda perdura. Vamos agora trepar para a categoria de 800 cc, sendo que nela apenas vamos abordar uma moto, mas não é um modelo qualquer, além de que vamos aproveitar a oportunidade para abordar uma marca que já é centenária e continua viVa e ativa, tal como a “família” de motos que lançou: a GS (Gelände Strasse) ou offroad e alcatrão!
Já tínhamos feito menção à marca BMW, por exemplo, foi um modelo dessa moto em que fiz o meu exame de condução, mais precisamente uma vetusta BMW R27. Porém, é agora a primeira vez que vamos abordar um modelo da marca de Munique, pelo que, como é habitual, vamos contar um pouco da sua história. Terá que ser mesmo muito condensada a descrição… ou a crónica nem sequer vai ser suficiente, tal o legado da Bayerische Motoren Werke (Fábrica Bávara de Motores).
A história começa em 1913, ainda antes do início da Primeira Guerra Mundial, quando Karl Friedrich Rapp funda em Munique a Bayerische Flugzeugwerke, fabricante de motores para aviões. A localização foi escolhida pela proximidade às instalações do fabricante de aviões Gustav Otto Flugmaschinenfabrik.
Em 1916, em plena guerra, a empresa expande-se, muda de nome e passa a chamar-se Bayerische Motoren Werke AG, adotando o símbolo da hélice com cores azul e branco (cores da bandeira do estado da Baviera), mas com o final da guerra e a derrota da Alemanha tudo se complica e o Tratado de Versalhes (1919) impede que a marca continue a produzir direcionada para a aeronáutica.
Na tentativa de mudar de atividade e sobreviver a marca redireciona a sua produção para as motos, já populares à época e mais económicas que os automóveis e em 1921 começa a produzir motores para outras marcas. Em 1922, muito graças ao génio do engenheiro Max Friz, prepara a sua primeira moto de grande produção: a fantástica R32!
A sua comercialização começa no ano seguinte e o mundo das motos nunca mais foi como dantes, de tal forma que a proposta de Friz ainda hoje continua válida, ainda que continuamente melhorada: transmissão por veio e cardã e o famoso motor bicilíndrico montado transversalmente a que ainda hoje damos o nome de boxer (como os punhos de um lutador). Tinha 494 cc, debitava 8,5 cv e atingia uma velocidade de 95 km/h. Já agora, o primeiro automóvel apenas surgiu em 1928.
A R32 foi apresentada ao mundo em 28 de setembro de 1923 no German Motor Show em Berlim e aclamada pela sua inovação tecnológica, aspeto robusto e estética muito bem conseguida. Custava cerca de 2200 marcos, muito dinheiro, mas foi um sucesso dentro e fora de portas, causando furor frente às dezenas de marcas já existentes no mercado.
Daí para a frente o sucesso foi praticamente imparável! A fórmula era vencedora e os resultados também na competição (velocidade, enduro/trial, recordes de velocidade…), na Alemanha e pelo mundo fora, nomeadamente Inglaterra, só veio reforçar isso!
Por outro lado, havia um grande génio criativo nos quadros da marca e logo em 1925 apresentam a R39, primeira monocilíndrico da marca, com motor de 250 cc e 6,5 cv. Escusado dizer que foi mais um sucesso da marca, tal como a R62, com motor de 750 cc, apresentada logo em 1928.
Porém, depois dos grandes sucessos nas décadas de 20 e 30 a Segunda Guerra Mundial veio alterar tudo! A produção foi direcionada para a guerra e a nova derrota da Alemanha deixou de rastos o país, bem como a marca BMW que teve que “ressuscitar das cinzas”, agravada pela divisão entre a Alemanha Ocidental e Oriental.
A marca atravessa períodos difíceis, chegando quase a ser “engolida” pela rival Daimler-Benz. As vendas na Europa não são famosas e são os EUA o mercado mais promissor, mas na década de 70 a marca está de novo em dificuldades, em boa medida porque estão a chegar, em força, as concorrentes japonesas e nem mesmo os seus mais recentes produtos, caso da R75/5 e R75/6, chegam para a marca respirar de alívio e é então que surge a homenageada desta crónica e muita coisa muda.
40 anos:
N.º 31: BMW R80 G/S
Para nos situarmos, estamos em meados da década de 70. A situação mundial não é muito famosa com uma série crise e dois choques petrolíferos (73 e 79). Muitos consumidores optam definitivamente pelo automóvel e os produtos japoneses dizimam os mercados com a sua robustez, fiabilidade e baixo preço. A BMW passa por momento angustiantes e tem que se reinventar para sobreviver.
Ao longo da década de 70 a marca já fizera várias tentativas de se dedicar de forma mais séria ao mercado de motos mais direcionadas para o fora de estrada e o sucesso da XT 500 certamente que acelerou esse processo. Nesse período, conturbado para a marca, importa destacar o nome de Lazlo Peres do departamento de testes da BMW que “criou” um protótipo, baseada no boxer de 800 cc, e com ela chegou a participar em competições. Era compacta, leve e fiável. De entre as várias motos em teste pela marca (que até pedira ajuda à italiana Laverda) esta tinha boas possibilidades de sucesso.
Em 1979 Karl Heinz Gerlinger, Senior Manager da marca tomou uma decisão histórica: avançar para a produção de motos de Enduro tendo por base a fórmula proposta por Peres, sendo que a competição seria uma prioridade. O futuro mostrou que estava correto!
A primeira edição do Paris-Dakar, em 1979, serviu de balão de ensaio e apesar de a vencedora ter sido a XT 500, o facto é que o protótipo da BMW era a moto mais potente de toda a caravana e com melhoramentos futuros certamente que tinha condições para ganhar a prova.
Em setembro de 1980, no Show de Colónia, a R80 G/S foi apresentada. O sucesso foi muito superior ao esperado pela marca e surgiram muitas encomendas ainda durante o certame. No final do ano seguinte a BMW já tinha produzido mais do dobro inicialmente projetado. A moto era um sucesso e só faltava vencer o Paris Dakar para consolidar o sucesso.
Assim, logo em 1981 venceu o Rally Paris-Dakar com o piloto francês Hubert Auriol, feito repetido em 1983. Voltou novamente a vencer em 1984 e 1985 com o belga Gaston Rahier, de quem já falámos aquando da apresentação da Suzuki DR 350 a vencer a prova, sendo que a moto já estava bastante alterada, incluindo um aumento de cilindrada para os 1000 cc e era um colosso.
As G/S que chegavam ao grande público utilizavam o motor BMW 247 R80 de dois cilindros opostos e 797,5cc, que foi montado num quadro da BMW R65 alterado. O motor era refrigerado a ar e a alimentação de combustível era feita através de dois carburadores Bing, nem sempre muito fiáveis e claro que, em potência pura, a moto era facilmente vencida pelas tetracilíndricas nipónicas, mas o foco da GS não era esse.
Já debitava cerca de 50cv às 6.500 rpm e um binário de 56 nm às 5.000 rpm, para um peso de 186 kg e vinha com a transmissão à roda traseira feita por veio e cardã, em vez da tradicional e muito exposta corrente, com uma caixa manual de cinco velocidades. A suspensão traseira monobraço (monolever) tinha sido desenhada especificamente para a GS e mesmo a forquilha convencional inicial veio depois a ser alterada. A sua velocidade máxima de cerca de 167 km era realmente impressionante.
A tudo isso somava-se uma roda de 21 polegadas à frente, atrás de 18 polegadas e fixa apenas de um dos lados. Tinha ainda elevado curso de suspensões e de altura ao solo (175 mm), um depósito de combustível com boa capacidade (19,5 l) e muita facilidade condução em estrada e fora dela! Era uma verdadeira on e off-road, conceito que ainda hoje se mantém e certamente vai perdurar e continua a ser um grande triunfo da família GS!
Em 1985, para comemorar as 4 vitórias no Dakar (a marca só voltou a vencer em 1999, já com regras muito diferentes), a marca decidiu lançar uma versão especial, com cerca de 200 unidades produzidas, hoje muito cobiçadas. As R80 G/S Paris-Dakar diferenciam-se porque têm um tanque de combustível maior, de 32 litros, são assinadas pelo vencedor da prova de 83 e 84, Gaston Rahier, e têm uma decoração específica e vêm sem as tampas/malas laterais.
Além disso, dado o sucesso desta edição limitada, a marca vendeu também vários kits, cerca de 3.000, para que outros felizes proprietários pudessem ter uma réplica daquelas 200 motos que são uma raridade e poucas chegaram aos dias de hoje.
A R 80 G/S que vos apresento agora, com um especial agradecimento ao J. Faria pela disponibilidade e simpatia, é um exemplar magnífico de uma moto tão especial e marcante, grande responsável pelo lançamento de um conceito de dualidade que não existia. Podemos chamar-lhe big trail.
Este espetacular exemplar é de 1986 e está com muito bom aspeto, sem chegar a ser mint, o que não me preocupa absolutamente nada e as marcas de uso/desgaste não são preocupantes, além de que um trabalho de restauro profundo nesta moto tem que ser feito por especialistas e vai ficar muito oneroso.
Marca 69.000 km, o que já é um valor de respeito, embora o motor seja bastante robusto. Podia ser adquirido com o conta-rpm (zona vermelha às 8.000 rpm) e um relógio, mas ambos eram extras! Ou seja, a política dos extras, hoje muito popular nos vários fabricantes, já tem décadas no fabricante germânico! Não é de agora!
Tem o gigante depósito, os respetivos autocolantes, a proteção de mãos e a “extra” proteção frontal e um selim de 2 lugares. Tem ainda os protetores dos 2 cilindros, muito úteis nos modelos da época e nos atuais e falta o poisa-pés do lado esquerdo do passageiro, mas continua a ser uma delícia de moto!
Andar numa moto destas, equipada com kick e motor de arranque de preferência, continua a ser uma experiência sensorial muito interessante, mas também desafiadora: ao ralenti o motor vibra bastante (quase começa a andar sozinha, passe o exagero) e a condução exige alguns cuidados, incluindo a travagem (disco dianteiro de pistão simples com 260 mm e tambor traseiro), tal como a própria forma como abordamos as curvas.
Aparte estas pequenas idiossincrasias, a posição de condução é boa, nomeadamente em pé, mesmo com o volumoso depósito. O centro de gravidade está lá bem em baixo o que ajuda imenso na condução fora de estrada. Já a embraiagem e a caixa são ambas duras, mas funcionam bem e a transmissão por veio e cardã é mesmo uma mais-valia.
Em suma, a R 80 GS, nas suas várias declinações, incluindo a mais estradista R80 ST era e continua a ser uma moto muito especial e foi a pioneira nesta dualidade de conceitos, de adventure touring, para quem quer viajar com bons níveis de conforto, muita autonomia capacidade de transportar bagagem e, ao mesmo tempo, notáveis capacidades de desempenho em todo-terreno.
Já agora, aproveitem para testar os vossos conhecimentos sobre o modelo neste quiz.
Evolução sumária da GS até final do milénio
Em 1987 a marca sentiu necessidade de evoluir o modelo que tinha sido pioneiro em muita coisa, nomeadamente na participação no Dakar com um bicilíndrico, mas agora as marcas japonesas estavam a investir neste Rally e a BMW decidiu que era preferível pensar nas vendas… e nos lucros!
Assim, em 1988 dá-se a primeira mudança de fundo, aparte a comercialização da mais pequena R650GS: a suspensão traseira evolui para um sistema mais moderno denominado paralever que reduzia a reação da moto ao binário do motor devido à transmissão por veio. Também desaparece a separação entre o G e o S e surge a GS 1000 com um motor de 980 cc e que era, no fundo, o mesmo motor que a marca usara nas últimas corridas no Dakar, mas revisto.
Porém, a evolução não podia parar, mais ainda porque a concorrência, sobretudo nipónica das já abordadas Africa Twin 750 e XTZ 750 não dava tréguas, além de que as exigências em termos ambientais e de ruído eram cada vez maiores e inovar era a única possibilidade para garantir a sobrevivência das GS.
Em janeiro de 1993 a marca lançou o modelo R1100RS Sports Tourer e menos de um ano depois uma versão de Enduro a R1100GS era também anunciada. Ambas com arrefecimento a óleo, 4 válvulas por cilindro e um quadro formado por 3 peças diferentes: O motor e a caixa de velocidades formavam o bloco central aos quais se fixavam os sub-quadros anteriores e posteriores.
A suspensão traseira era uma evolução do Paralever, mas à frente a alteração era radical: em vez da habitual suspensão telescópica, a marca lançou um sistema que deu o nome de telelever, que conjugava a suspensão telescópica com braço oscilante, algo completamente inovador e a aceitação do modelo mostrou que era uma boa opção. Existiu ainda uma versão de 850 cc, mas a sua aceitação foi sempre muito inferior até porque havia concorrência interna.
Já no virar do milénio, em 1999, a marca lançou a sua R1150GS com uma série de melhorias ao nível do motor ou da caixa de 6 velocidades, mas sem nunca renunciar ao objetivo inicial que esteve na génese da família GS e que continua válido mesmo nos dias de hoje.
A concorrência dentro da marca à versão de 850 cc tinha surgido logo em 1993 com a utilização de um motor de apenas um cilindro, produzido pela Rotax e em associação com a Aprilia, algo que já abordámos quando apresentámos a Aprilia Pegaso. Pela primeira vez na sua história a marca abdicava da sua transmissão por veio e cardã e adotava o mais simples sistema por corrente! Uma traição à tradição da marca, mas que correu bem!
Depois de um hiato de 27 anos a marca lançava de novo um monocilíndrico com a sua F650 que se tornou a primeira BMW de muita gente e que tinha caraterísticas mais ou menos urbanas, consoante as gerações e modelos, caso da Funduro ou da ST.
Já no ano de 2000 a marca relança a sigla GS na sua F650, mas o motor era um bicilíndrico em linha de 800, mas essa história vai ter que ficar para outra vez!
Para terminar, a GS lançada em 1980 foi mais que a tábua de salvação da marca alemã! Tratou-se de uma moto que mudou por completo o panorama das motos de aventura capazes de dar a volta ao mundo! Esse espírito manteve-se e a própria marca continua a lançar edições comemorativas em homenagem à R80 G/S.
A maior parte das fontes de informação não são portuguesas, mas há exceções, caso do BMW Clube. De qualquer modo, a maioria da oferta sobre o modelo é noutras línguas, apresentando-se agora alguns pontos de pesquisa.
BMWMotoclube: fórum nacional dos/das amantes da marca, muita informação sobre as GS;
Motor24: história detalhada da família GS, em português;
Micapeak: historial detalhado da família GS desde 1980, pelo menos até 2004;
Lonerider: muita informação sobre a evolução da GS desde o seu começo;
GS-forum: para quem domine o alemão ou recorra a tradutor, muita informação;
Advrider: fórum especializado em motos de aventura, mais de 2000 páginas sobre a família GS;
Para o próximo número vamos subir de cilindrada e regressar ao Japão! São inúmeras as viagens que já fizemos! Se pudéssemos acumular as milhas no cartão era ótimo! O próximo modelo é muito especial e a sua cilindrada, 900 cc, reforça isso mesmo até porque era uma moto realmente incrível quando chegou ao mercado, fruto nomeadamente da sua leveza. Fazem ideia de que moto estou a falar?! Até sexta-feira!
Texto: Pedro Pereira