Nota Introdutória:
Como indicado na semana passada, onde nos detivemos na Suzuki Freewind, vamos regressar à europa. Quem tiver acompanhado a última crónica sabe perfeitamente que a escolha iria recair entre a BMW F650 e a Aprilia Pegaso 650. Ambas são europeias e ainda nenhuma das marcas foi apresentada e até “partilham” o mesmo motor. A opção recaiu sobre a Aprilia Pegaso, sendo que o fabricante BMW será apresentado um pouco mais à frente.
Em crónicas anteriores, nomeadamente na RGV 250, 250 já tínhamos falado na marca de Noale, mas será nesta crónica que, ainda antes de nos debruçarmos sobre o modelo escolhido, vamos contar um pouco da história do popular fabricante italiano que, para variar, também teve uma vida muito atribulada e um grande sucesso na competição. Aliás, o vídeo que a seguir se apresenta e que tem por base a barreira temporal de 1990-2020, mostra os principais modelos da casa de Noale, sendo que se adivinha logo a ligação umbilical à competição.
A Segunda Guerra Mundial foi uma tragédia sem precedentes, mas a verdade é que foi graças a ela que, ao nível das duas rodas, surgiram muitas marcas de construtores e uma verdadeira revolução na mobilidade e se “democratizou” o uso do veículo próprio.
Para variar, também a Aprilia chegou ao mercado na altura da reconstrução da europa. Neste caso pelas mãos do criativo e engenhoso Alberto Beggio, que começou por produzir bicicletas numa pequena fábrica em Noale, província de Veneza, onde ainda hoje é a casa-mãe da marca.
Na década de 60 a sua fábrica foi crescendo e graças ao seu filho Ivano Beggio (que nos deixou há 4 anos atrás) foi dado o salto para a produção de motos, já que o interesse pelas bicicletas tinha caído muito. Aliás, não é à toa que Ivano é ainda hoje considerado como o ”Pai da Aprilia” no que às motos diz respeito, sendo que acompanhou sempre de muito perto a empresa até ao seu falecimento e ele próprio era um apaixonado por motos e pela competição.
Ainda antes do final da década a jovem marca apresentou o seu primeiro veículo motorizado: a 50 cc Daniela, logo a seguir a Colibri e, pouco depois, a sua primeira moto de competição fora de estrada, a estrondosa Scarabeo que muitas alegrias trouxe à marca, seja em 50 ou 125 cc! Incrível como em tão pouco tempo o pequeno fabricante conseguiu fazer chegar ao mercado 3 modelos completamente distintos.
A partir do ano da nossa revolução começou a aposta séria na competição do estilo motocross, com a RC 125, mas o primeiro título só chegou em 1977 no campeonato italiano na modalidade e logo nas categorias de 125 e 250, o que era um grande feito para a jovem marca!
A década de 80 foi difícil e complexa (veja-se o caso da Ducati), mas a marca não baixou os braços e começou a expandir-se para outros segmentos e a apostar na exportação, alargando o seu leque de motorizações das 50 até às 600 cc, na maior parte das vezes apoiando-se no know-how de outros fabricantes de motores, em especial da Rotax, que se tornou seu parceiro privilegiado durante muitos anos.
Foi ainda na década de 80 que lançaram motos que ficaram para a história, caso da AF1 ou da GP 250, mas o melhor estava para vir e foi o que aconteceu no início da década de 90 quando lançaram, por exemplo, a primeira scooter de “rodas altas”, a popular Scarabeo, a inovadora Pegaso 125 e depois 600. Em 1992, dois anos mais tarde, surge a Pegaso 650, que é a escolhida para esta crónica.
A competição continuava sempre no adn da marca e Beggio um apaixonado da mesma, ajudando a lançar novos pilotos de topo, como os dois desta foto (não preciso de dizer quem são). Em 1998 a marca lança no mercado a sua primeira moto de grande cilindrada: a bicilindríca RSV Mille, uma verdadeira superbike que qualquer um poderia adquirir, desde que tivesse meios para tal!
Chegamos ao virar do milénio e vamos parar aqui para nos debruçarmos sobre a escolhida da semana, mas ressalvo ainda que, em dezembro de 2004, numa altura em que a marca atravessava dificuldades, passou a fazer parte do Grupo Piaggio, tal como a centenária Moto Guzzi, que apresentaremos muito em breve.
N.º 25: Aprilia Pegaso 650
Para os mais distraídos ou que se “baldaram” às aulas de História, na mitologia grega Pégaso era um cavalo alado e o símbolo da imortalidade (não confundir com a extinta marca de desportivos e veículos pesados espanhola). Segundo reza a história, Pégaso nasceu do sangue de Medusa quando foi decapitada por Perseu. O mais importante é perceber que o nome é mitológico e com associação direta com o modelo, bastando olhar para as laterais do depósito.
Algo que muita gente desconhece é que a Pegaso 650 não foi a primeira da família, ainda que sendo sempre a mais popular. A honra de primogénita coube à Pegaso 600, apresentada em 1990 e cuja comercialização começou em vários mercados apenas no ano seguinte. Era uma moto “muito à frente do seu tempo”, sendo uma adaptação bem conseguida de uma moto de perfil todo-terreno (Touareg 600) para uma moto mais de perfil estradista, com suspensões de longo curso, uma posição de condução descontraída e menor altura ao solo, entre outros.
Vinha equipada com um motor monocilíndrico de 562 cc, com dupla árvore de cames, refrigerado a ar e fabricado pelos austríacos da Rotax. A sua silhueta era inconfundível face à concorrência e era uma autêntica dual-purpose, mas com uma forte componente asfáltica, quando a tendência dominante anterior era a inversa!
Por comparação, a Freewind que apresentámos a semana passada, só chegou ao mercado em 1997, ou seja, uma eternidade depois. Muito antes disso a Aprilia 600 evoluiu para a 650, moto que chegou a ser bastante popular também em Portugal, sendo ainda relativamente comum de encontrar, sobretudo nas versões já de injeção.
Destaque ainda para o facto de ter existido uma versão 125 (estive quase comprador de uma, mas acabei por optar por uma japonesa, a razão e a carteira curtinha falaram mais alto), lançada ainda em 1989, também ela com uma decoração irreverente, um fantástico e pontudo motor a 2 tempos e uma ciclística de topo, que sempre foi algo a que o modelo nos habituou.
Em 1992 a marca lança a Pegaso 650. Mais refinada, com um propulsor atualizado, já com refrigeração líquida e mais uns “pozinhos” ao nível de potência e binário. Para ser mais preciso, o motor tinha agora 652 cc, uma relação curso/diâmetro de 100 mm x 83 mm e debitava cerca de 50 cv às 7.000 rpm, com um binário de 60 nm às 6.500 rpm.
Era uma moto, dentro da categoria, francamente rápida, bonita, com detalhes de topo, caso da suspensão dianteira invertida, duas vistosas saídas de escape, quadro em alumínio, um peso em circulação a rondar os 180 kg e um depósito de grande capacidade, capaz de levar 21 litros. Porém, mesmo numa condução sem grandes abusos, o consumo médio não era inferior aos 6 litros, podendo chegar com facilidade aos 7 ou mesmo mais!
O espetacular exemplar que hoje apresentamos (muito obrigado Helder, pela disponibilidade e simpatia) é de 1996 e está com um aspeto muito bom, sendo que a decoração em azul dá uma grande ajuda, apesar de haver ali alguns detalhes que chamam a atenção. Por exemplo, o selim foi ligeiramente rebaixado e o aro da frente (dourado, cor original) é acompanhado por um prateado na traseira, oriundo de outra moto.
Foi importada da Alemanha há alguns anos e está francamente bem conservada, sendo que a pintura é a original, embora já tenha levado um “tratamento” para lhe aumentar longevidade. O painel de instrumentos é esteticamente irrepreensível e com muita informação, marca apenas 22.000 e foi do mesmo proprietário durante 20 anos, o que ajuda a explicar o ótimo aspeto geral.
Nota mais para o sistema de travagem (disco dianteiro de 300mm com duplo pistão e atrás simples de 240 mm) e para a facilidade com que atinge velocidades na ordem dos 150 ou mesmo 160 km, de ponteiro, apesar de a proteção aerodinâmica já começar a ser manifestamente insuficiente e começar a surgir uma indesejável vibração, além de que os consumos…
Por falar em velocidade, este mesmo motor foi usado também em outras marcas e modelos, caso da BMW F650, o Quad Can-Am/Bombardier 650 e até na exótica e muito rara Aprilia Moto 6.5, fruto do génio do famoso designer francês Philippe Starck, que criou uma roadster distinta, dedicada especialmente aos viajantes urbanos.
Voltando à Pegaso 650, tinha uma diferença de fundo face à BMW ou à Bombardier: a opção por uma cabeça com 5 válvulas em vez de quatro! O objetivo era simples: optar por válvulas mais pequenas de modo a garantir que o motor suportava melhor os regimes médios e altos, apresentando assim um comportamento mais desportivo.
Ao longo da sua carreira (a designação Pegaso continuou a ser usada já neste século) foi sofrendo várias atualizações, nomeadamente de caráter estilístico ou uma versão mais estradista de nome Road. Apesar disso, não deixou muitas saudades no que à fiabilidade diz respeito, sobretudo nos primeiros anos, embora parte da culpa possa ser atribuída à falta de cuidados dos seus proprietários e não apenas à mecânica em si.
Fora as questões de parte elétrica e eletrónica, um bom exemplo é o problema crónico ao nível da cremalheira de embraiagem e do motor de arranque que avaria com facilidade sendo a reparação cara. Nos dias de hoje não tanto porque existe material da concorrência, mas foi algo com que muitos dos seus proprietários se depararam, mais cedo ou mais tarde. A moto simplesmente começava a fazer barulho no arranque, acabando por deixar de arrancar simplesmente e a reparação era uma pequena fortuna!
Porém, a lista é bastante mais extensa e situações comuns de alguma ferrugem até são o menor dos males! Há casos de problemas na bomba de gasolina, na junta da cabeça do motor com mistura de óleo/líquido radiador e um muito grave: a bomba de óleo deixar de funcionar, podendo ou não acionar a respetiva luz de aviso. Esta situação obrigava a quase um motor novo, tal a gravidade da avaria e levou algumas pessoas a nunca mais quererem sequer ouvir falar da marca!
Vamos ser claros, quando falámos da Monster, por brincadeira, dissemos que na década de 80/90 muita gente lhe chamava Sucati em vez de Ducati! Aqui em vez de Aprilia… era conhecida por Avarilia! Usando uma expressão tipicamente italiana que aqui se aplica perfeitamente: la belleza non bastta!
Não quero com isto afirmar que a compra de uma Aprilia Pegaso 650, sobretudo das mais antigas, não possa ser uma compra interessante, mas os riscos são elevados e há peças para as quais é mesmo uma complicação encontrar alternativas, sendo que o mercado de usados pode ser a única solução. Não é à toa que, comparando com as japonesas da época (onde a Aprilia até costumava ser mais cara), o seu valor atual no mercado seja inferior. Para bom entendedor…
BMW F650: “a outra” 650 com Motor Rotax
A BMW, habitualmente associada aos seus motores boxer (falaremos deles em breve) ou a motos de grande cilindrada e vocacionadas para a aventura e para viajar (veja-se a família K) chegou rapidamente à conclusão de que, no início dos anos 90, o filão das motos com um misto de perfil de trail mais estradista tinham um grande potencial e percebeu que não podia ficar fora desse mercado!
Para poupar tempo e custos, escolheu a solução mais simples: foi buscar um motor que já existia ao mercado e a escolha recaiu sobre o Rotax 650 que a Aprilia já estava a usar na sua Pegaso 650 desde o ano anterior. Mais incrível ainda e que algumas pessoas desconhecem: durante vários anos a produção das motos “alemãs” era feita pela fábrica da Aprilia, em Noale, com motores austríacos e supervisão germânica!
Na prática, a marca teve um hiato de 27 anos entre o seu último monocilíndrico (A BMW R27, sobre o qual falámos na apresentação da NX 250 e que serviu para o meu exame de condução) e a novíssima BMW F650 que acabava de chegar ao mercado em 1993 e se tornou rapidamente num sucesso muito superior ao que a marca previra, a ponto de os alemães decidirem fazer um “desdobramento” para várias modelos: F650, Funduro, ST e, mais tarde, até GS!
Assim, com um investimento menor e algumas alterações de pormenor (não me refiro ao símbolo e nome da marca gravado nas tampas dos cárteres), mas a algo mais relevante ao nível do quadro e suspensões, uma cabeça do motor com 4 válvulas e, pela primeira vez, a marca alemã rendia-se ao uso de uma corrente para a transmissão secundária, em vez do habitual sistema de veio e cardã. A marca germânica lançou um clássico que chegou a liderar as vendas no mercado doméstico e a vender muita mais que a Aprilia Pegaso!
Não podemos esquecer que a BMW tinha uma rede de comercialização muito mais extensa, muito mais historial e a sua imagem já estava perfeitamente consolidada. Se a isso acrescentarmos um posicionamento mais premium e um importador muito mais ativo (Baviera SA) que o da Aprilia (Milfa) é fácil de perceber que as vendas da F650 tenham suplantando em muito as vendas da Pegaso também no nosso país.
O preço até ajudava bastante a Aprilia que, em 1994, custava 1079 contos face aos elevadíssimos 1330 contos da BMW F650, mas não era suficiente!
De qualquer modo, o pioneirismo, ao contrário do número de vendas, vai pertencer sempre à Pegaso, o cavalo com asas, que ajudou muito a fazer com que a marca italiana pudesse aspirar a voos mais altos e a dar o merecido destaque a uma marca bastante popular, mesmo na atualidade e sempre com enfoque na competição.
Como vai sendo habitual, as principais fontes de informação são em outras línguas, mas a informação disponível ainda é razoável.
Veneziatoday: artigo sobre a história da marca e dos seus fundadores;
PressoPiagio: História da marca até aos nossos dias, desde 2004 no universo Piaggio;
Apriliaforum: muita informação sobre a marca e o modelo, incluindo os problemas;
Bmwgroup: história da BMW F650 e a sua ligação à Aprilia;
Motorcyclenews: Informação sobre o modelo Aprilia Moto 6.5;
Motorbikepub: historial da marca, incluindo os 10 modelos que considera mais relevantes.
Para o próximo número vamos subir novamente de cilindrada que ainda há muitos modelos interessantes para abordar, mas o número 50, da última crónica, está cada vez mais próximo. Vamos para as 750 cc! Uma cilindrada muito equilibrada e interessante, em que os valores de potência e binário são já elevados, mas longe ainda dos extremos da categoria acima. A primeira escolha é nipónica e, de certa forma, representa a primeira superbike da era moderna. Qual será a eleita? Até sexta-feira!
Texto: Pedro Pereira