Como prometido na semana passada, a crónica natalícia teria de ser muito especial. Esta época do ano é mágica, tal como é também o legado que a vasta equipa liderada pelo Zé Amaro deixa, mais ainda agora que passou o lugar de timoneiro a outra pessoa, Pedro Baptista, depois de 42 anos à frente do navio.
Este algarvio de gema, nascido há 72 anos em Faro, é conhecido por várias facetas. A sua simpatia e humildade conseguem conquistar qualquer um e foram um aspeto crucial para elevar o Moto Clube de Faro ao estatuto que tem hoje, mas foram mais longe: ajudaram a dignificar o mundo das motos em Portugal e a colocar de pé uma concentração que continua a ser não apenas uma referência nacional, mas também europeia e até mundial.
Quem gosta de motos e não foi pelo menos uma vez à Concentração de Faro é como ser muçulmano e não ter ido a Meca, passe o exagero, mas a Capital do Motociclismo é um lugar icónico e o Vale das Almas tem um simbolismo muito especial. Para perceber é preciso sentir e isso só indo lá!
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O amor ao seu Algarve e às motos moldaram a sua vida
Mesmo agora, Zé Amaro continua igual a si próprio. Com um olhar magnético, uma voz pausada e o sotaque puramente algarvio, não há como enganar. Alto e magro, com a sua habitual t-shirt preta e os longos cabelos, cada vez mais grisalhos, são uma espécie de cartão de visita, mas a forma como defende a promove a sua terra, incluindo o seu Clube de Futebol, o Farense, fazem parte de si (a época presente não está a correr bem, estando posicionados no fundo da tabela).
Porém, ao que consta, Amaro tem um problema clubístico grave: é também adepto do Sporting! Até aqui nada de novo ou de anormal, o problema é quando se confrontam os dois clubes! Por qual torcer? Imaginem que têm duas motos de que gostam imenso, cada uma à sua maneira. Não as podem conduzir ambas ao mesmo tempo, pois não? Assim creio que já se percebe melhor o dilema!
Zé Amaro viajou muito e continua a viajar, sempre que possível de moto, é conhecido por praticamente toda a comunidade motociclística nacional e também lá fora, mas é incrível como isso nunca lhe subiu à cabeça! É a mesma pessoa quando liderava uma concentração que reunia mais de 30.000 mil pessoas e tinha um orçamento chorudo para gerir, quando vai à Assembleia da República ou quando recebe visitas no quartel-general do moto clube do seu coração.
Esse amor estende-se à sua terra e ao grande envolvimento que sempre tem devotado nas causas sociais, seja para apoiar os bombeiros, o IPO, a segurança rodoviária ou qualquer outra causa, Amaro sempre soube estar ao serviço do próximo e não servir-se do próximo. Até a sua moto habitual costuma ser uma vetusta Kawasaki 1000 ZL que já deve estar a ser uma clássica. Se aquela moto falasse!!!
Aliás, no discurso que proferiu ao passar o testemunho à nova direção, em poucas palavras, diz quase tudo, reforçando que o objetivo do Moto Clube de Faro não é ganhar dinheiro! Não se trata de uma empresa, mas antes um clube de motos com referências e que é preciso preservar a todo o custo.
E as motos?
Conta o próprio que teve a sua primeira motorizada quando tinha uns 15 ou 16 anos. Uma qualquer produção nacional, mas que para um jovem dessa idade era o máximo, mais ainda quando Portugal era um país pequeno e fechado. Mesmo morando numa cidade capital de distrito, Faro era pequena e os transportes maus pelo que ter um veículo de transporte próprio era um verdadeiro luxo.
A partir aí a paixão arrebatou-o para nunca mais o largar! Logo aos 18 anos tratou de tirar a Carta de Moto e nunca mais conseguiu parar! Conta que a sua primeira viagem, logo pouco após o 25 de abril, já em liberdade, foi a França.
Arrancou com um amigo, montado numa Honda 250 e lá foram à descoberta. Este é o termo usado e é fácil perceber porquê! Sem GPS, autoestradas e uma infinidade de mordomias atuais, já para não falar nos controlos fronteiriços, na necessidade de cambiar Escudos por Pesetas e Francos…
O que mais os marcou foi a grandiosidade da prova. Ver o Bol d’Or em França, com 100.000 pessoas a assistir ou mais, deve ter marcado profundamente os dois jovens e fez-lhes perceber que fazia falta começar algo em Portugal, ainda que numa escala diferente. Estava ali parte do gérmen do Moto Clube de Faro.
A ideia começou a ganhar rapidamente forma e surgiram vários entusiastas, alguns deles já não estão entre nós, sendo que a fundação oficial do Moto Clube de Faro ocorreu em 1982 e Amaro foi eleito presidente… até 2024!
A sua paixão, entrega, dinamismo foram sempre magnetizando mais pessoas e o Moto Clube de Faro começou a crescer. Claro que teve as dores normais de crescimento, mudou de sede várias vezes e hoje tem um espaço digno, sem luxos, e que até serve muitas vezes para albergar motociclistas de passagem que ali encontram o seu porto de abrigo.
Mesmo hoje são inúmeras as pessoas que voltam à concentração, ano após ano ou que simplesmente vão percorrer a EN 2 e sentem que se não forem dar um salto ao Moto Clube de Faro a viagem não fica completa!
Aquilo que não nos mata… acaba por nos fortalecer!
Todos conhecemos o termo resiliência e a sua importância, em particular nos momentos mais difíceis, aqueles em que somos colocados à prova e temos de mostrar que somos mais fortes, mesmo quando somos acusados injustamente ou colocam em causa a nossa integridade.
Poderia ser mais bonito apresentar apenas os momentos altos da concentração, como na edição dos 30 anos em que os Iron Maiden atuaram no palco principal para cerca de 30.000 pessoas, mas Amaro e a sua equipa nunca quiseram que a concentração fosse um festival de música e ainda bem!
É um espaço de comunhão e partilha, de pessoas que simplesmente gostam de motos! Durante o resto do ano podem ser médicos, políticos, advogado, calceteiros, pescadores ou desempregados. Ali nada disso interessa! São todos iguais e tratados dessa forma!
Referimos apenas três momentos delicados e que nos servem também para fazer refletir:
Em 2018, após a possibilidade de um ataque na concentração de Faro, realizou-se uma megaoperação da Polícia Judiciária no local e logo na quarta-feira. O resultado foi a detenção de 59 elementos do grupo Motard Hells Angels. Acabou por não ter grandes efeitos práticos na concentração, mas se não tem havido uma atuação previdente, poderia ter havido um banho de sangue durante a concentração.
A Concentração de Faro em 2022 (40.ª edição), depois de dois anos sem se ter realizado por causa da pandemia, também esteve em risco, nomeadamente por causa da meteorologia (risco muito elevado de incêndio) que causou um estado de contingência.
Deve ter sido um desafio tremendo, depois de tantos compromissos assumidos, conseguir avançar com o projeto, apesar de todas as dificuldades que levaram a uma mudança parcial do local da concentração, mas tudo acabou em bem.
Outro exemplo, logo no ano seguinte, foi quando foi instaurado um processo ao José Amaro e Moto Clube Faro, após várias diligências e de ser interrogado no Tribunal pelo Sr. Procurador… tudo deu em nada e o processo foi arquivado, mas foi sempre um desgaste, apesar de não queimar o bom nome de José Amaro e do Moto Clube de Faro!
Zé Amaro também direito agora a ter mais tempo para si, para se dedicar à família e aos amigos, mas afirmou que vai continuar atento e a sua experiência e conhecimentos vão continuar a ser úteis e postos ao serviço do Moto Clube de Faro e da comunidade em geral.
Para a semana, última crónica de 2024, teremos novamente alguém bem conhecido do mundo das motos. O seu papel na condução dos destinos do motociclismo em Portugal, há vários anos, é bem superior ao que o seu apelido representa na Marinha. Quem será?