Num país ancestral como o nosso, muitas das tradições e do que conhecemos hoje nasceu de lendas e narrativas que foram sendo transmitidas de boca em boca. Socorrendo-se de histórias de aparições de Nª Senhora, de milagres diversos ou de mouras encantadas e os seus amores e desamores, assim foram justificados factos ou suposições cuja natureza era desconhecida nos tempos em que ocorreram.
Não há terra que as não tenha e, por vezes, a mesma história é contada em locais diversos e bem distantes como aí tendo ocorrido.
À volta da albufeira da Barragem de Castelo do Bode é possível que nos deparemos com algumas. A começar pela que serviu para denominar a região, a própria barragem e o seu extenso reservatório de água: Castelo do Bode.
No percurso que é contado no Roteiro Motos/Viagens ao Virar da Esquina (edição de Março) cruzámo-nos com mais duas.
No Penedo Furado, a Lenda da Bafureira e da Bicha Pintada. Mais adiante, em Dornes, a Lenda de Nª Sª do Pranto.
São essas que se contam de seguida:
A LENDA DO BODE E DO SEU CASTELO
Reza a lenda que em tempos idos, um pastor levava o seu rebanho pelos montes onde foi construída a Barragem.
E todos os dias, um bode escapava-se para o cimo do monte.
A imponência do bicho, para mais vista cá de baixo pelas gentes que por ali passavam, levavam-nas a exclamar:
”- Lá está o bode no seu castelo!”
E assim aquela região ficou conhecida como sendo a do Castelo Do Bode!
Mais à frente no nosso percurso, num troço da original Estrada Nacional 2, chegámos ao Penedo Furado. Uma estreita garganta, que podemos imaginar ter sido escavada ao longo de milhares de anos pelo curso da Ribeira de Codes.
No cimo do penhasco, onde hoje existe o Miradouro do Penedo Furado e onde podemos encontrar um nicho com a imagem de Nª Sª dos Caminhos, inicia-se um caminho em descida acentuada que leva até lá abaixo à ribeira perto do local onde está a praia fluvial.
A meio da descida, um fóssil que se crê ter mais de 480 milhões de anos, foi denominado por “Bicha Pintada” e diz a lenda que terá sido feito por uma serpente enfeitiçada.
Toda essa história faz parte da Lenda da Bafureira que conto a seguir:
A LENDA DA BAFUREIRA
Fala esta lenda que em tempo já ido há muito, uma jovem e humilde pastora vinda de Matagoza, talvez porque nestas coisas nada é certo de verdade, levou o seu rebanho até às margens da Ribeira de Codes num local conhecido como Bafureira. Daí a Lenda da Bafureira, que fica situada num local que hoje conhecemos como Penedo Furado.
Ao chegar às suas imediações, ouviu um canto melodioso que a cativou. Reparou que a voz era de uma bela mulher moura sentada nas margens da ribeira.
A bela mas melancólica melodia era cantada em palavras que a pastora não entendeu. Ao mesmo tempo deslizava um bonito pente de ouro pelos seus longos cabelos negros. A tristeza que vinha daquela linda mulher fez com que a pastora se aproximasse sem receio.
Quando se sentiu observada, a moura parou o seu canto e levantou-se olhando para a pastora. Cobria-lhe o corpo um longo vestido de seda e estava enfeitada com jóias resplandecentes.
A pastora, que sempre tinha vivido em profunda pobreza, não resistiu a cobiçar tais riquezas. Com um movimento lento, estendeu-lhe a mão dando a entender que lhe estava a pedir o pente de ouro.
A moura recusou. Numa voz suave e doce, disse-lhe que poderia ter o pente de ouro e também um bezerro de ouro que se encontrava escondido na encosta por debaixo do rochedo do Penedo Furado. Para tal, teria que fazer algo: permitir que ela lhe beijasse a boca e ainda teria também de se converter à fé mourisca, pois só assim o seu encanto seria quebrado e poderia voltar a ser mortal.
A pobre pastora, olhou para si própria: pés descalços, vestido roto e sujo, fome por vezes, pobreza sempre. E imaginou-se muito rica, com bonitos vestidos, belos sapatos, jóias maravilhosas… Pareceu-lhe que o preço a pagar valia a pena. Se era isso que era preciso então que fosse! Com a cabeça, acenou à bela moura e esta aproximou-se com um ligeiro sorriso…
De repente, perante o olhar incrédulo primeiro e aterrado depois da pastora, a moura transformou-se numa enorme serpente, com a cabeça esticada tentando beijá-la!
Em pânico, a pastora recua de um salto e benze-se! Ao ver o sinal da cruz, o horrendo animal estacou e , silvando de raiva, bateu em retirada, rastejando pela pedra até se esconder num buraco, onde não mais foi encontrada. Por onde serpenteou, ficou gravado um sulco na pedra. Exactamente o mesmo sulco que ainda hoje por lá se mantém.
Ainda aterrada, a pastora correu até à aldeia para contar o sucedido. Os aldeãos dirigiram-se ao local e verificaram o sulco na pedra, que sempre tinham conhecido como sendo lisa.
Em frenesim, pois queriam eliminar aquela ameaça, revolveram as pedras e vasculharam em todos os locais possíveis, mas a moura encantada tinha desaparecido e o bezerro de ouro nunca mais foi encontrado!
Por isso, ainda hoje – dizem… – o povo continua a acreditar que a moura encantada continua a sair da toca nas noites de lua cheia. Toma a sua forma humana e acerca-se das águas calmas da ribeira, cantando a sua suave melodia e penteando-se com o seu pente de ouro…
Se alguém for atraído e se aproximar nada consegue ver….porque o encantamento só permite avistar a moura encantada a quem a ame verdadeiramente ao ponto de renegar a fé Cristã, professar a fé mourisca, e permitir que a bela moira a beije na boca, pois é essa a única forma para se conseguir o desencanto.
Facto é que, a meio caminho entre o Miradouro e as águas da Ribeira de Codes, no local conhecido como Penedo Furado, se encontra a “Bicha Pintada”, uma laje com uns estranhos e profundos riscos… quem sabe…
Para almoçarmos, procurámos Dornes. Terra que conheceu maior grandeza em tempos passados e que hoje, com a albufeira da Barragem de Castelo do Bode, nos presenteia com uma paisagem verdadeiramente mágica.
A ancestralidade da terra, bem patente na sua herança templária, faz com que o seu património seja enriquecido com uma lenda, que o músico e pintor Alfredo Keil (o compositor do nosso Hino Nacional) eternizou na sua obra literária “Tojo e Rosmaninho”: a Lenda de Nossa Senhora do Pranto.
A LENDA DE NOSSA SENHORA DO PRANTO
Assim conta esta lenda Fernanda Frazão em “Passinhos de Nossa Senhora” (Lendário Mariano de Lisboa, Apenas Livros, 2006, p.114-115):
“Há muitos séculos atrás, as terras desta região pertenciam à Rainha Santa Isabel, mulher de el-rei D. Dinis. Era feitor da rainha, na região, um cavaleiro chamado Guilherme de Paiva, ao qual atribuíam proezas milagrosas. Conta-se deste homem que, certa vez, passou a pé enxuto o rio Zêzere, caminhando de uma margem para a outra sobre a sua capa, que lançara sobre as águas.
Um dia, andava Guilherme de Paiva atrás de um veado, na banda de além do Zêzere, onde só havia brenhas e matos espessos, quando ouviu uns gemidos muito dolorosos. Tentou saber de que sítio provinham e, apesar de perder algumas horas nesta busca, nada conseguiu achar, pois os gemidos pareciam provir dos mais diversos locais. No dia seguinte voltou ali e, de novo, os gemidos se espalharam à sua volta, vindo agora de um tufo espesso de mato, depois de um rochedo, numa ciranda sem fim. Guilherme de Paiva sofria, espantado, partilhando a dor daquele alguém que parecia fazer parte do universo. Ao terceiro dia, tudo se repetiu como antes.
Tomou, pois, a decisão de partir para Coimbra, onde estava a sua senhora, a fim de lhe relatar aqueles estranhos factos. Assim que chegou à cidade, dirigiu-se imediatamente à pousada real e solicitou a sua visita a D. Isabel.
Esta, mal o viu, e depois das saudações devidas, disse-lhe:
— Vindes por via dos gemidos, Guilherme?
— … !
— Não precisais espantar-vos! Três noites a fio sonhei com eles e sei do que se trata.
— O que é então, Senhora? Procurei por todo o lado e nada vi…!
— Bem sei. Deus contou-me tudo nos sonhos. Agora vais voltar ao local e procurar onde te vou dizer: aí acharás uma imagem santa de Nossa Senhora, com o Filho morto em seus braços.
— Assim farei, minha Senhora Dona Isabel! Mas, e depois, que faço eu dessa imagem?
— Guardá-la-ás contigo, até me veres chegar junto de ti!
Despediu-se Guilherme de Paiva, da Rainha Santa, levando na memória a localização exacta da moita onde a imagem de Nossa Senhora o aguardava, gemendo, e partiu de Coimbra.
Já de volta a terras do Zêzere, o cavaleiro dirigiu-se à serra da Vermelha, como lhe dissera D. Isabel, e foi milagrosamente direito a uma determinada moita, onde achou enrodilhada em urzes a imagem da Virgem pranteando a morte de seu Filho.
Durante algum tempo manteve-a consigo, na sua própria casa. Os gemidos haviam cessado, e assim Guilherme de Paiva tinha a santa imagem na sua câmara, com um archote aceso de cada lado.
Um dia, a Rainha Santa foi, finalmente, às suas terras do Zêzere resolver o caso da imagem. Assim, junto a uma velha torre pentagonal que já aí existia, mandou erigir uma ermida para a Virgem achada nas moitas. E nessa torre — que provavelmente foi construída pelos Templários —, ordenou que se instalassem os sinos da ermida.
Em breve, o povo começou a construir casas em redor da capela e da torre e, diz a lenda, a Rainha Santa deu a esta vila nascente o nome de Vila das Dores, nome que com o tempo se teria corrompido até dar Dornes. É isto o que conta a lenda transcrita no velho manuscrito.
A capela com a sua torre sineira ainda hoje existe, e a imagem achada há muitos séculos atrás é venerada sob a designação de Nossa Senhora do Pranto.“
Ficamos a saber como nasceu a povoação das Dores, mais tarde Dornes e nasceu o culto que lhe deu importância. Importância que mais tarde fez o Rei D. Manuel I atribuir-lhe foral, nos idos de 1513.
A capela foi edificada seguindo as instruções da Rainha, um local pitoresco defronte da Serra da Vermelha e a Nossa Senhora do Pranto lá ficou para sempre, até hoje. Lá continua a ser venerada por fiéis de uma e de outra margem do rio que, todos os anos, nos três dias do Espírito Santo, se juntam aos milhares para cumprirem as suas promessas e renovarem os seus votos.
Créditos
POR: Henrique Saraiva – Viagens ao Virar da Esquina
FOTOS: Henrique Saraiva – Viagens ao Virar da Esquina