Para quem vive na zona de Lisboa, península de Setúbal ou até um pouco mais longe, a Serra da Arrábida é considerada o “nosso parque de diversões”. Todavia, é de uma injustiça profunda reduzi-la a essa designação. Mas não o fazemos por mal. É antes uma forma carinhosa de a ela nos referirmos.
Ou porque queremos “fazer uma prainha” – e neste caso as motos têm acesso privilegiado nas épocas mais movimentadas -, desfrutar de uma paisagem fabulosa ou divertirmo-nos nas curvas das suas estradas, a Serra da Arrábida é sempre a aposta segura quando nos falta a oportunidade de procurar outras paragens. Já para não dizer que, na maior parte das vezes, não é recurso: a Arrábida é a opção.
Vista da Arrábida
Foi este o caso, até porque tinha umas histórias para contar e que certamente escaparão a muitos dos que por ali passam. Vamos a isso!
PRIMEIRO, O CAMINHO
Somos animais de hábitos. No meu caso, geralmente abordo a Serra da Arrábida pelo lado de Azeitão. Nenhuma razão em especial – ou talvez haja uma: adoro fazer a descida a seguir às antenas pela amplitude e beleza da paisagem – mas para quem não esteja tão familiarizado com estas estradas recomendo que a percorram nos dois sentidos. Conheço poucas estradas em que as sensações sejam tão diversas num e noutro sentido.
Cheguei à Arrábida
E, para quem prefira, antes de começar a função um cafézinho para acompanhar uma maravilhosa Torta de Azeitão. Especialidade local altamente recomendável. Por acaso, eu até prefiro no regresso…
Entrada de V. Nogueira de Azeitão
Logo a seguir a Aldeia de Irmãos viro à direita seguindo as indicações “Arrábida” (se viermos do lado de Sesimbra o cruzamento surge antes). Não tem que enganar, estou na EN 379-1 que percorre o cimo da Serra e depois desagua na Estrada da Rasca (EN10-4), junto à fábrica de cimento. São cerca de 20km espetaculares.
No início sem grandes inclinações mas já com curvas e contra curvas, uma constante a partir daqui, avanço para sul em direcção ao contorno montanhoso da Serra. Depois de Casais da Serra, a estrada começa a empinar. Até que… eis que surge, lá em baixo, o mar. Azul! Profundamente azul!
Uma iguaria – a Torta de Azeitão
Depois de 7 km percorridos tomo uma primeira opção. Um cruzamento indica-nos à direita o caminho para o Portinho da Arrábida. Essa é a Rua Círio da Arrábida, estrada que segue junto à costa e dá acesso às bonitas praias. Todavia, está interrompida a meio por questões de segurança. Por isso, este é um caminho de ida e volta.
Permite-nos ir até Galápos, mas depois regressamos pelo mesmo caminho até este cruzamento. Ainda assim, temos ao nosso alcance as mais bonitas das praias da Arrábida!
No final da descida, novo cruzamento, à direita, leva-me ao Portinho da Arrábida. Segui em frente, e chego ao Creiro (cujo acesso pode ser pelo areal a partir do Portinho, ou por um caminho que desce até à praia) e onde podemos também encontrar a Estação Arqueológica do Creiro.
Passo pelas praias do Monte Branco, da Anixa e dos Coelhos (cujos acessos são exclusivamente pedestres e recomendam alguma habilidade para tal).
Depois as lindas Galapinhos – coroada como uma das mais bonitas do mundo – e Galápos (onde em tempos idos existiu uma mítica e saudosa discoteca – o Seagull).
A vista torna-se deslumbrante
De referir que estas praias se situam num plano inferior à estrada (que vai perdendo cota progressivamente). Toda esta costa apresenta um profundo contraste entre o azul profundo do mar e o verde das encostas serranas, intermediado com o dourado dos areais das suas praias.
Galápos ao entardecer
Se tivesse ido de 4 rodas, teria ficado no Creiro. De moto pude chegar até aqui! Regresso pelo mesmo caminho até encontrar novamente o cruzamento e viro à esquerda para o Portinho.
Figueirinha
PORTINHO DA ARRÁBIDA
É uma visita obrigatória, a espetacular praia do Portinho da Arrábida.
Uma calma enseada com areal diminuto que progressivamente vai crescendo para leste até chegar à Praia do Creiro, em frente à grande referência paisagística: a Pedra da Anicha. Um pequeno rochedo que sobressai do mar a cerca de 100m da praia e que é reserva ecológica integrada no Parque Natural da Serra da Arrábida.
Chegada ao Portinho
Portinho da Arrábida
A meio da estreita estrada que conduz à praia, à meia dúzia de vivendas e aos 2 restaurantes que ficam praticamente em cima do mar, encontra-se o Forte de Santa Maria da Arrábida onde está localizado o Museu Oceanográfico.
Praia do Portinho, Creiro e Pedra da Anicha
De referir ainda que este acesso é muito condicionado: quer por semaforização alternada, quer ainda, na época estival por impedimento de acesso. E o estacionamento? algo simplesmente….residual, excepto para nós. Vantagem clara das motos!!!!
Portinho e Forte de Santa Maria
É tempo de voltar à estrada, lá mais acima, para continuar. No cruzamento, volto a encontrar a EN 379-1, viro à direita e continuo a subir, agora sim, em ritmo de curva e contra-curva.
Homónimos
Aqui viro à direita em direção ao cimo da Serra
O CONVENTO DA ARRÁBIDA
A primeira paragem surge numa curva à esquerda. À minha frente está uma das guaritas de veneração dos mistérios da Paixão que fazem parte do chamado Convento Velho, uma das componentes do Convento da Arrábida.
Dessa guarita, tenho uma visão excelente para o Convento Novo bem como mais uma lindíssima panorâmica de toda a Costa da Arrábida.
O Convento da Arrábida, construído no século XVI, abrange, ao longo dos seus 25 hectares, o Convento Velho, situado na parte mais elevada da serra, o Convento Novo, localizado a meia encosta, o Jardim e o Santuário do Bom Jesus.
A guarita – noutra ocasião
O Convento Novo, conjunto de diversos edificios, integra, além da Igreja, sete capelas, dezassete celas, cozinha, refeitório, livraria, torre do relógio, cada das lavagens e três fontanários. Adjacentes ainda, a Casa da Romana cuja serventia era a de alojar os peregrinos e ainda as Mesquitas.
Convento da Arrábida
O Convento Velho é formado pelas grutas, nas quais habitaram os primeiros frades (Séc. XVI), pelas guaritas ou capelas que formam a Via Sacra (encontro-me numa delas) e pelas Ermidas da Memória e da Ermida de Santa Catarina.
E é da Ermida da Memória que se conta a Lenda de Hildebrando. Navegador inglês, que em noite de borrasca viu surgir a imagam de Nossa Senhora sob a forma de uma luz que o encaminhou para terra, salvando-o e à sua embarcação. Grato pela graça, edificou no local da visão de Nossa Senhora uma ermida consagrada à sua devoção e assim surgiu o culto de Nossa Senhora da Arrábida.
O complexo do Convento é visitável…algo que se recomenda.
Retomo o caminho, mas não por muito tempo. Cerca de 1 km adiante, nova paragem!
Convento Novo
UMA HISTÓRIA DE ESPIÕES…AO SERVIÇO DE SUA MAJESTADE
Uma reentrância à direita, com mais um miradouro e uma particularidade: a rampa dos praticantes de parapente que depois de sobrevoarem toda esta magnífica encosta, vão aterrar no areal do Portinho.
Esta rampa é também, actualmente, um dos locais mais “instagramáveis” da Serra. A malta empoleira-se ali…e dá a ideia que estão em suspenso sobre a falésia. É bonito e emocionante…até ao dia em que alguém tiver o azar de escorregar e fizer parapente…sem o pente!
Mas este local tem uma história muito mais interessante!
Foi aqui, à saída da curva à esquerda que antecede o miradouro, que em 1968, o agente secreto de Sua Majestade com licença para matar — Bond, James Bond (George Lazenby, no seu único filme da saga) — parou o inevitável Aston Martin.
A rampa de parapente e a vista deslumbrante
Estava acompanhado da sua noiva, Teresa (Tracy) di Vicenzo (Diana Rigg). Tinham acabado de celebrar o casamento na Herdade do Zambujal (Palmela), seguiam no sentido inverso ao que nós agora levamos e este era o início da lua-de-mel.
A paragem serviu também para o noivo retirar do Aston as flores que o ornamentavam desde a cerimónia do casamento.
Foi aqui!
Mas 007 nunca está descansado! Um grande Mercedes 600, conduzido pelo vilão Ernst Stavro Blofeld (Telly Savallas) aproxima-se e ultrapassa-os. No banco de trás, à janela, Irma Blunt (Ilse Steppat), a diabólica ajudante de Blofeld dispara uma rajada de metralhadora.
007- Ao Serviço de Sua Majestade (imagem do filme)
Quando James Bond entra no carro constata que Tracy está morta… e na cena final vemos aproximar-se um motociclista da GNR em traje de gala!
007- Ao Serviço de Sua Majestade (imagem do filme)
Este é o relato dos 3 minutos finais do filme que foi por muitos considerado o pior da saga, sendo bastante menosprezado pela crítica de então. Todavia, na actualidade é considerado um dos filmes de culto de James Bond. E o único que passou por Portugal até esta data!
O filme é “007 — Ao Serviço de Sua Majestade” e estreou em Londres no final de 1969.
De facto, a transição de intérprete principal não foi pacífica e isso penalizou Georges Lazenby, com um registo bastante diferente do carismático Sean Connery que tinha protagonizado os anteriores 5 filmes de James Bond e ainda mais contrastante com o do actor que lhe sucedeu, Roger Moore.
Mas para nós, será certamente um dos principais, pois nele podemos ver a Serra de Sintra e o Guincho, o Casino Estoril e a Baixa Lisboeta, para lá da Arrábida, obviamente!
007- Ao Serviço de Sua Majestade (imagem do filme)
CONTINUO O CAMINHO
Neste ponto, pouco mais falta subir. Estou perto do troço da estrada que segue pela cumeada da Serra, muito menos sinuoso e que termina junto das antenas de radiofonia. Em dada altura, brevemente, consigo no mesmo local observar ao mesmo tempo as vastas paisagens para norte – até Lisboa – e para sul – até Sines. Quando a visibilidade o permite.
Na recta que antecede as antenas existe um miradouro com uma ampla vista para norte, onde podemos ver toda a Península de Setúbal até Lisboa e, a oeste, as praias da Costa da Caparica. Aqui existe um painel de azulejos que retrata esta vista…mas que vândalos se encarregaram de destruir! Se o céu estiver limpo e com boa visibilidade é possível distinguir as duas pontes sobre o Tejo e o Cristo Rei.
Certa vez nas Antenas
Prossigo e começa a descida. Este troço é, para mim, um dos mais belos onde já passei. Por isso não me canso de o percorrer!
As antenas no cimo da Serra
A meio, escondidos pelo mato, existem dois miradouros que proporcionam vistas espectaculares para as praias e para o Portinho da Arrábida.
Um pôr-do-sol aqui é algo de absolutamente mágico!
A mais bela descida
Pouco mais à frente, a paisagem abre-se para o estuário do Sado: Tróia à direita, Setúbal à esquerda, ao fundo a zona industrial da Mitrena e no meio, um pequeno mar interior onde com frequência são visíveis as brincadeiras da comunidade de roazes que por aí vão andando.
O Pôr do sol na Arrábida é mágico
A DECADÊNCIA DA IMPORTÂNCIA MILITAR ESTRATÉGICA DA ARRÁBIDA
Já no final da descida e depois de um “gancho” à direita, encontro a Porta de Armas da 7ª Bataria de Artilharia de Costa.
Os portões abertos e o estado de abandono indiciam aquilo que iria encontrar: uma fortificação ao abandono tal como os postos de tiro, ainda com o que resta das respectivas peças de artilharia.
Apesar do abandono, quer o forte quer a instalação de artilharia permite-nos ter uma boa ideia de como eram, quando em actividade. Entrei!
O forte, chamado de Forte (velho) do Outão fica no cimo de um promontório que tem aos seus pés, à beira mar, o Forte de Santiago (Hospital Ortopédico do Outão) bem como uma das mais bonitas vistas da Serra da Arrábida.
Chegada ao forte da 7ª Bataria
Forte de Santiago
A construção do Forte Velho do Outão (também designado por Forte do Zambujal, Forte do Facho ou Atalaião da Serra da Arrábida) ter-se-á iniciado cerca de 1649, quando João de Saldanha de Oliveira recebe a incumbência de construir um atalaião no alto da serra para colocação de peças de artilharia.
Concluído em 1655, uma carta do Rei D.João IV ordena ao Governador de Setúbal que entregasse o comando do Atalaião ao capitão Agostinho Cardos com uma guarnição de 6 soldados. Esta fortificação complementava a posição bélica e defensiva do Forte de Santiago.
A vista para o estuário do Sado
Forte Velho do Outão
Forte Velho do Outão
O forte está, devido ao abandono, em estado adiantado de degradação, muito ajudado pela vandalização que ao longo do tempo tem sofrido — com os omnipresentes graffitis (talvez por essa razão algumas das janelas e acessos estão agora emparedados). Resiste apenas pela solidez da construção.
Forte Velho do Outão
Paredes sólidas do Forte Velho do Outão
Um pouco mais à frente, acedo à zona onde estão 3 peças de artilharia de médio alcance (10 a 20km) Vickers de 152mm. Eram elas que, quando em atividade, faziam a defesa da entrada da barra do Sado.
As ameias do Forte e o rio que defendiam
Funcionavam de forma coordenada, no âmbito do Regimento de Artilharia de Costa, com outras peças que asseguravam a defesa de Lisboa e Península de Setúbal, segundo o plano luso-britânico definido pelo general inglês Barron no pós 2ª guerra mundial.
O objectivo era criar uma força especializada em impedir o desembarque de uma força convencional apoiadas por unidades navais naquela região. O plano foi desenhado em 1939, a construção desta 7ª Bataria decorreu entre 1944 e 1954 e cessou a actividade (pela obsolescência deste tipo de defesa) em 1998. O RAC foi extinto em 2001.
Esta 7ª Bataria funcionava em ligação com a 6ª sediada na Raposa próximo da Fonte da Telha e com a 8ª em Albarquel (Setúbal). Todas faziam parte do Grupo Sul do RAC que também incluía a 5ª Bataria da Raposeira (Caparica).
Para lá das peças de artilharia é possível apreciar o esquema montado à volta (e por baixo) delas, maioritariamente subterrâneo, com casamatas para os militares, paióis para as munições e os sistemas de elevação destas para alimentarem as necessidades de tiro.
Também aqui é visível o estado de abandono e incúria.
Peças de artilharia
Peças de artilharia
Peças de artilharia
Peças de artilharia
Peças de artilharia
NÃO HÁ BELA SEM SENÃO…
Concluída a visita à 7ª Bataria, prossegui. Passei na parte mais feia da Serra: as pedreiras de extracção da pedra para a fábrica de cimento que fica logo abaixo. É incrível como vamos encontrar um atentado destes à natureza numa zona com esta beleza… e assim cheguei ao final da descida.
No cruzamento com a Estrada da Rasca, virei à direita e um pouco mais à frente, novamente à direita rumo à Figueirinha. Passei pela fábrica de cimento e, num ápice esquecemos a sua existência.
Em direção ao mar
O FORTE DE SANTIAGO
Uma pequena subida e à esquerda, entre nós e o mar, mal vislumbro uma edificação que quase passa despercebida não fora ter um pequeno farol: o Forte de Santiago do Outão. Vimo-lo bem do cimo do Forte Velho.
Tendo origem no Séc. XIV, nele fica hoje o Hospital Ortopédico do Outão, depois de no início do Séc.XX ter tido a valência de Sanatório.
Este é o resultado de sucessivas construções feitas naquele local estratégico da barra de Setúbal, a primeira das quais, uma torre de vigilância mandada edificar por D. João I em 1390.
Ao longo do tempo foi sendo beneficiada e ampliada, à medida do crescimento da importância marítima de Portugal e do porto de Setúbal em particular.
As principais obras que resultaram numa ampliação significativa ocorreram no reinado de D. Sebastião. Mais tarde, durante a dinastia filipina, a Casa do Corpo Santo (importante instituição de Setúbal) solicitou ao rei a instalação neste forte de uma torre de farol para auxílio à navegação que ficou concluída em 1625 e tendo essa construção sido custeada por aquela instituição.
Depois da Restauração da Independência, voltou o forte a receber importantes obras de modernização e reforço, cuja conclusão ocorreu em 1657. O forte manteve a valência bélica até ao Séc. XIX, quando foi desactivado. Foi depois, durante algum tempo utilizado como prisão. Em 1890 recebeu obras de adaptação e passou a ser utilizado até ao início do Séc. XX como residência de veraneio do Rei D. Carlos.
Forte de Santiago – Hospital Ortopédico do Outão
Entretanto, a sua localização foi reconhecida como sendo valiosa no tratamento de doenças do foro pneumológico pelo que até 1908 foi utilizado como Sanatório. A partir dessa data, passou a ser um Hospital Ortopédico, função que ainda hoje conserva.
Forte de Santiago – Hospital Ortopédico do Outão
PRAIA DA FIGUEIRINHA
No final da subida, uma curva suave à direita e o horizonte abre-se à minha frente: o areal mais extenso destas praias da Arrábida, a Figueirinha.
Esta praia tem uma configuração diferente das outras da Arrábida. Para lá de ter uma zona balnear maior, a lingua de areal que surge na baixa-mar permite verdadeiramente caminhar mar adentro. Por outro lado, o maior espaço disponível faz com que seja possível ter apoios de praia que são muito agradáveis e úteis nas alturas de maior estio.
Chegada à Figueirinha
Convém salientar que na época balnear, o trânsito até à praia da Figueirinha apenas é permitido a transportes públicos e….motos! Em outros tempos a barafunda era mais que muita e as autoridades tiveram que tomar medidas.
Por outra razão, a instabilidade das arribas, o trânsito a seguir à Figueirinha (depois do túnel) está totalmente interrompido à circulação (como já referi atrás).
Praia da Figueirinha (no Verão)
Assim, tenho que voltar para trás e seguir para a última paragem neste périplo pela Arrábida e as suas histórias. Esta talvez a mais peculiar…e menos conhecida! Fica um pouco mais à frente, já em direção a Setúbal.
O túnel da Figueirinha
A COMENDA DE MONGUELAS
Cerca de 1km à frente, numa curva à esquerda, vislumbra-se entre o arvoredo que envolve a estrada, um edifício imponente, mesmo à beira-mar… que aqui ainda é rio.
A zona é famosa porque tem um parque de merendas que antigamente costumava juntar muitas famílias de domingueiros que aqui faziam os seus petiscos. Um conflito recente com o atual proprietário, faz com que o acesso esteja condicionado.
Imponente pela sua volumetria, pela sua arquitetura e pela sua localização, é conhecido por Palácio da Comenda, tem uma pequena enseada privativa e está rodeado de frondosa mata. Para lá chegarmos, mais uma volta de estrada, passamos pelo parque de Merendas da Comenda e depois …o portão de acesso à Comenda de Monguelas.
O primeiro vislumbre do Palácio da Comenda
Preparem-se que a história é longa…e diversificada.
A Comenda é uma propriedade situada na encosta sul da serra, sendo as suas origens anteriores a 1800. Foi a mesma, incluíndo o luxuoso palacete e praia privada, vendida por D. Maria — Rainha de Portugal, em hasta pública, pelos idos de 1848. Fica a cerca de 2 km de Setúbal, banhada pelo estuário do Sado, com uma praia privada e de olhos postos em Tróia. Maravilhoso!
Conta a história que a construção neste local começou no período romano, com um complexo industrial de salga de peixe, passou por uma torre de vigia medieval, que, no século XVII, dá origem à plataforma de S. João da Ajuda, um baluarte situado estratégicamente à entrada do estuário do Sado.
E é sobre esta plataforma abaluartada que, no século XIX, é construída uma primeira casa de habitação. E era a que existia no local quando Ernest Armand, ministro de França em Lisboa, compra a propriedade, no dia 9 de Março de 1872, por cinco contos de reis.
Mais de 20 anos após a aquisição da propriedade, o Conde d’Armand doou-a ao seu únco filho varão, Abel Henri Georges Armand. Com 5 filhos e querendo usufruir na plenitude da localização magnífica, o já conde por morte de seu pai, decide-se pela reconstrução da casa e adapta-a à sua condição aristocrática e às necessidades impostas pelo seu relacionamento com as melhores famílias europeias.
E para tal, chamou um jovem arquiteto português que posteriormente faria carreira prestigiada: Raúl Lino, que mais tarde foi fundador e presidente da Academia de Belas Artes, projectou entre mais de 700 obras, a Casa dos Patudos em Alpiarça, o Cinema Tivoli em Lisboa, o Cine-Teatro Curvo Semedo em Montemor-o-Novo ou os Paços do Concelho de Setúbal.
O aristocrata francês fez uma curiosa exigência ao então jovem arquiteto Raul Lino, quando lhe atribuiu o trabalho: que antes de iniciar o projeto gozasse de uma noite de luar no sítio onde planeava implantar a casa, como forma de melhor apreender o espírito do local para conceber um projeto em harmonia com a luxuriante paisagem. E assim foi! O projeto data de 1903 e a obra foi concluída em 1908.
Palácio da Comenda
Depois da morte do pai, e após os tempos difíceis da I Guerra Mundial, a casa passa para o novo conde, Roger Ernest Armand. E com a família permaneceu durante mais cerca de 4 décadas.
Nos anos 80 do Séc. XX, a quinta foi adquirida por um empresário do sector imobiliário, António Xavier de Lima que lhe terá feito algumas alterações que desvirtuaram a herança arquitectónica de Raul Lino, até aí inalterada. Após a morte daquele, ficou ao abandono, exposta à degradação e ao vandalismo.
Visitei-a há 5 anos. E para tal utilizei o expediente pouco legal de “pular o muro”. Nada de novo nem de original. Estavam lá a fazer uma sessão fotográfica com uma modelo….e também tinham entrado da mesma forma…
Contada a genealogia do sítio, vamos às histórias que povoam o seu passado e até o seu imaginário.
Convém salientar que de então para cá, a propriedade – o palácio e a quinta que o rodeia – foram adquiridos e o edifício e o que o rodeia foram recuperados. Honra seja feita que aparentemente foi mantida a traça original (ou pelo menos a que tinha antes de começar a degradação). Só que agora…não dá para saltar o muro e ir confirmar… fiquemos com as imagens do exterior.
Palácio da Comenda
Vamos às histórias então:
A Casa da Comenda foi cenário de verões repletos de glamour. Fosse na presença da própria família Armand e do círculo da melhor aristocracia europeia e portuguesa, fosse como estância de veraneio de outras famílias a quem cediam a casa, fosse a personalidades mais mediáticas, como a princesa Lee Radziwill, irmã da viúva do presidente norte-americano J. F. Kennedy, e do seu inseparável amigo, o escritor Truman Capote, que no verão de 1965 ali terão passado uma temporada
Mas, ainda antes, terá sido uma mulher frágil e de luto que chegou ao Palácio da Comenda, na Serra da Arrábida, em Setúbal, logo após o assassinato do marido, John F. Kennedy, em Dallas 22 de Novembro de 1963.
Jacqueline Kennedy veio para Portugal com os dois filhos pequenos, Caroline e John-John, a convite dos condes D’Armand. Não há registos que assim tenha sido, de facto. Mas esse terá sido também o objectivo do isolamento pretendido…
Em 3 de Agosto de 1975, nova tragédia aparece associada ao palácio da Comenda.
Nesse dia, um duplo assassinato ocorre na mansão: Madalena e seu cunhado Miguel aparecem assassinados a tiro, num dos quartos do 1º andar, aparentemente durante um encontro amoroso.
No andar térreo, ao fundo da escadaria, Julieta, irmã mais velha de Madalena e mulher de Miguel jaz tombada com uma pistola na sua mão. A queda deixa-a longas semanas em coma e quando retoma o conhecimento, está cega e sem memória do que terá acontecido. Todos eram membros de uma família de posses, o que no Verão Quente de 1975 em Portugal ainda tornou a situação mais complicada.
Justiça (politicamente) apressada condenou Julieta à prisão, acusada de ter morto o marido adúltero e a sua irmã. Afinal todas as evidências apontavam para ela, mas…
Assim começa a história que 28 anos mais tarde acaba por ser desvendada!
Só que… nada disto ocorreu na realidade. Trata-se de um romance do escritor Domingos Amaral, editado em 2012, no qual o Palácio da Comenda serviu de cenário inspirador da maior parte da trama. Quer à época dos “factos”, o Verão Quente — precisamente o título da obra — de 1975, quer no posterior desenvolvimento do mistério, 28 anos mais tarde.
Quando lá estive ainda era possível aceder ao caminho que levava ao ancoradouro, tal como na história.
Palácio da Comenda
Mas já não o era ao primeiro andar dos quartos, pois a escadaria onde Julieta tombou estava completamente em ruínas. Assim como parte do teto, quase todas as janelas e portas também. De facto a ruína apoderara-se lamentavelmente deste edifício que estava completamente vandalizado.
Palácio da Comenda – caminho do ancoradouro (em 2019)
Palácio da Comenda (em 2019)
Palácio da Comenda (em 2019)
Palácio da Comenda (em 2019)
Palácio da Comenda (em 2019)
Palácio da Comenda (em 2019)
Palácio da Comenda (em 2019)
Há 5 anos, o preço de venda, segundo constava, era de 50 milhões de euros. Alguém se terá chegado à frente, com esta ou outra importância. Ainda bem, porque fazia pena este património estar à beira da ruína. A localização é fabulosa, a paisagem não tem preço. E se a inveja não fosse um pecado mortal, garanto que estaria invejoso dos felizes proprietários. Mas é melhor não arriscar….
Palácio da Comenda (em 2019)
A CONCLUSÃO DO PASSEIO
Estou junto ao portão da Quinta da Comenda.
Três alternativas restam. É questão de escolher a mais conveniente para cada um, a saber:
a) voltar atrás, tomar novamente a Estrada da Rasca até ao seu final junto à EN10 e aí virar à esquerda rumo a Azeitão…e à prometida Torta. Se a condução ficar por ali, então a doce iguaria merece ser acompanhada por um cálice do excelente Moscatel de Setúbal!
b) seguir em frente, em direcção a Setúbal. E…se a fome apertar, procurar um dos muitos restaurantes e saborear o prato mais típico: o “Chôqe Frrrite”. Mas para lá do choco frito, ou dos saborosos e variados pratos de peixe, Setúbal é uma cidade onde a gastronomia não é deixada em mãos alheias.
c) a terceira opção, destinada a quem conheça pior estas paragens ou queira mesmo só fazer curvas…é voltar pelo mesmo caminho, percorrer novamente a estrada da sera, agora em sentido contrário – garanto que a vista é espectacular e as sensações diferentes! Depois, porque não ir até Sesimbra ou ao Cabo Espichel? Ou a ambos?
Vou para onde?
Qualquer que seja a opção escolhida…vão! E até pode ser que por ali nos encontremos.
Nota: este passeio realizou-se no início de Fevereiro de 2024. Todavia, inclui algumas fotos de arquivo de Viagens ao Virar da Esquina, nomeadamente relativas ao Forte Velho do Outão (algumas estão agora inacessíveis), ao Palácio da Comenda (após a recuperação não é visitável e as fotos antigas respeitam a 2019, quando estava em ruínas).
As fotos de entardecer também foram obtidas noutra ocasião.
As imagens do “Ao Serviço de Sua Majestade” foram extraídas do YouTube
Créditos
POR: Henrique Saraiva – Viagens ao Virar da Esquina
FOTOS: Henrique Saraiva – Viagens ao Virar da Esquina