Nota Introdutória:
Como previsto, a semana passada a nossa atenção recaiu sobre uma moto intemporal! A Honda GL Gold Wing não é, nem nunca foi, o Santo Graal das motos, mas esteve lá perto e ganhou por direito um lugar na história. A eleita desta semana não tem certamente tanto charme ou evoluções, até porque a produção foi relativamente reduzida, mas teve um papel muito importante na narrativa do mundo das duas rodas e é por isso que aqui a incluo.
Vamos fazer uma viagem no tempo para trás, a tal analepse. Estamos em meados da década de 80. Portugal e Espanha preparam a sua adesão à CEE (Comunidade Económica Europeia), vive-se alguma estabilidade a nível global, mas para o mundo das motos nem tudo são rosas, nem perto disso!
Por um lado, as marcas japonesas continuam o seu processo de afirmação planetária, ameaçando a sobrevivência de todas as outras marcas que, muitas vezes, acabam mesmo por desaparecer, por manifesta incapacidade de fazer frente ao poderio nipónico.
Além disso, considerando a europa, há o entendimento comunitário mais ou menos claro, segundo o qual as motos estão a ficar demasiado perigosas! Muito rápidas, com potências a ultrapassar facilmente os 100 cv e velocidades de ponta alucinantes, a caminhar perigosamente para os 300 km/h, sem que os sistemas e equipamentos de segurança acompanhem esta evolução.
Por outro lado, as preocupações ambientais, com consumos e ruído começam a ganhar mais expressão e as marcas percebem que é necessário mudar um pouco o foco sob pena de, em especial no sempre apetitoso mercado europeu, os seus produtos acabarem por ser proibidos, um pouco na lógica do que está a acontecer agora com vários motores incapazes de cumprir a norma Euro 5.
Em Munique, de forma mais ou menos secreta, pensava-se em encontrar formas de dar resposta a estes problemas e, ao mesmo tempo, lançar um modelo que fosse menos conservador e cinzento que o habitual, mas também capaz de fazer frente à armada nipónica, não em prestações puras, mas noutros predicados como a segurança ou o conforto, sem abdicar de uma performance de eleição.
Ou seja, o que a BMW procurava era fazer “várias motos numa só” quando o habitual, sobretudo para os japoneses, era o oposto: de uma única base ou plataforma ter vários modelos distintos e assim chegar a diferentes públicos.
A experiência hoje mostra-nos que a segunda opção, regra geral, é a melhor escolha, mas a BMW tinha que garantir a sua sobrevivência e inovar ou corria o risco de ser também engolida e as vendas da família GS, R e K não chegavam para lhe garantir o futuro.
Aproveitando, na medida do possível, o que já tinha disponível no seu banco de órgãos, nomeadamente o motor tetracilíndrico da K100 (987 cc), longitudinal, mas melhorado. Veio agora com uma colaça de 16 válvulas (pela primeira vez na série K) e uma novíssima injeção Bosch Motronic que foi buscar ao seu departamento de automóveis, deixando de usar o LE-Jetronic.
Porém, o novo modelo tinha muitos outros traços distintivos, inclusive no plano estético e que não correram da forma esperada, mas já lá vamos. O vídeo abaixo conta um pouco da história:
N.º 35: BMW K1
A novíssima K1 foi apresentada ao mundo no Köln Motorcycle Salon (mais conhecido simplesmente por Intermot) de 1988 e, ao que consta, chocou meio mundo, mas não necessariamente pelas melhores razões, embora as vendas oficiais tenham começado apenas no ano seguinte.
Fazendo uma analogia, a queda do Muro de Berlim, também em 1989, coincidiu com a chegada ao mercado da moto que rompeu com quase tudo o que se conhecia da marca até então!
A novíssima “superdesportiva turística” rasgava completamente com a tradição da marca bávara e não correu bem, apesar de todos os seus muitos atributos. Aliás, correu tão mal que a sua produção terminou logo em 1993, tendo sido produzidos próximo de 7.000 unidades, mais precisamente 6921. Mesmo para uma marca não muito habituada a grandes volumes, como os japoneses, foi um fracasso e não havia como o negar!
Logo para começar, a moto vinha equipada com uma carenagem integral de fibra de fibra de vidro (7 peças unidas entre si) que lhe davam um aspeto futurista e diferente de tudo o que existia, mas mais inesperado ainda eram as decorações berrantes, algo que nunca se vira na marca e que chocou muitos fãs do modelo. Se o objetivo era escandalizar… foi atingido, mas isso não garante vendas e em Munique descobriram isso da pior forma!
As suas formas angulosas e esculpidas em túnel de vento, tinham um gigante farol dianteiro, um guarda-lamas que quase escondia a roda dianteira e mesmo nas laterais o motor era quase invisível, além de que não permitia colocação de malas laterais, tendo apenas uns pequenos compartimentos, possíveis de fechar com chave, que eram pouco mais que simbólicos e não agradavam a ninguém de tão exíguos e pouco práticos!
Aproveito agora para apresentar o modelo desta semana e fazer um agradecimento público ao PTJD. Nem só de cores garridas como amarelo, vermelho ou azul viveu o modelo, pelo menos numa fase posterior. A marca também optou por cores mais consensuais, como o deste bonito exemplar de 1992, mas o mal estava feito! A verdade, nua e crua, é que mesmo tendo muitas virtudes a moto se tornou mal-amada e alvo de críticas um pouco por todo o lado.
Fazendo uma adaptação livre da expressão “não me preocupa com o que as pessoas pensam de mim, o que importa é o que eu fiz para elas pensarem assim”, a marca arriscou e perdeu, mas foquemo-nos na moto em si.
Este exemplar tem uma decoração tradicional, mais de acordo com cânones da marca, não tão extravagante e conseguindo até ser muito discreta. Quase me atrevo a afirmar que se a BMW tivesse apostado logo nesta cor especial, conhecida como “black series” no lançamento, em vez de um amarelo e vermelho ou azul e amarelo, as coisas podiam ter corrido melhor, mas estou apenas a especular!
Já nem quero destacar muito o fator preço que em nada ajudava, mas vamos contextualizar. Tomando como referência o ano de 1992, esta moto custava um valor elevado de 2278 contos, sem ABS! Por exemplo, a Honda CBR 1000F, que começou a ser comercializada em 1987, no ano de 1992, tinha um preço de 1700 contos e foi um sucesso e nem sequer tinha alguns dos atributos da K1, embora tivesse outros. Mesmo a Honda Pan European ST 1100 custava 1950 contos!
Conduzir uma K1 foi para mim quase a realização de um sonho! Logo que chegou ao mercado foi rapidamente crucificada até por alguma da imprensa especializada e pelo público em geral, mas admito que gerou em mim um incrível fascínio e passaram muitos anos desde que tive oportunidade de experimentar uma! Olhava para a moto e lembrava-me cenas de ficção científica, tipo Battlestar Galactica com as suas motos voadoras, as “Vipers“!
Estar quase completamente envolvido por carenagens (que empurram o calor para nós) ou ter que esticar os braços numa posição estranha foi para mim algo fantástico e a moto conduz-se relativamente bem, com uma estabilidade referencial e o ecrã dianteiro, para mim que sou baixo, permite uma posição de condução até relativamente confortável.
Já agora, a brecagem não é má! É simplesmente péssima, para ser simpático! Tentar completar 8’s com esta moto ou simplesmente uma inversão de marcha num espaço apertado chega a ser um tormento, agudizado pelo comprimento da moto e o peso elevado.
Não se pode negar o óbvio: a moto é rechonchuda e anafada (os mais de 250 kg na balança não enganam), vista de qualquer ângulo, mas foi deliberado e fez parte do grande investimento em túnel de vento para lhe garantir um excelente CX de 0,34, um valor mesmo referencial até para os dias de hoje! Em vez de mais cv… melhor aerodinâmica!
Olhando para o modelo destas fotos dá prazer ver os detalhes, os acabamentos, as jantes de liga leve de 3 raios, a harmonia de cores menos espampanante ou o gigante K1 nas laterais. Até o painel de instrumentos consegue ser atrativo… para uma moto do final da década de 80, numa altura em que a digitalização estava a começar a dar os primeiros passos, como mostra o relógio digital.
Os botões laterais tinham funções específicas e serviam, por exemplo, para o comando dos 4 piscas (emergência) ou para acionar os punhos aquecidos. No fundo, era uma forma de tentar dar um ar mais premium ao modelo. Aliás, mesmo hoje a marca opta por manter muitos botões físicos dedicadas apenas a uma função específica e é uma opção que faz sentido.
Este exemplar tem uma quilometragem baixíssima o que torna ainda mais especial, mas reparem como a zona proibida, aqui assinalada a amarelo, apenas começa depois das 8.500 rpm e o os carateres da velocidade indicam 280 km/h! Claro que são otimistas, mas consta que chegava aos 240 reais com relativa facilidade e num motor que não ultrapassava os 100 cv, cumprindo com previsto num acordo de cavalheiros na Alemanha que nem todas as marcas cumpriram, mas essa é outra história!
Ou seja, a marca tentou contornar o limite da potência usando um estratagema inteligente: vamos melhorar a aerodinâmica! A ideia não era nova e ainda hoje se aplica, mas a BMW com este modelo foi muito longe, talvez até demasiado longe! Apostaram tudo na função e esqueceram-se da forma! Foi uma pena e a marca nunca mais voltou a tentar a graça! Imagino que mesmo agora o nome K1 seja maldito por aquelas bandas, o que é pena!
Mais razões de destaque
Aparte a autolimitação de potência de 100 cv (não seria difícil para a marca ir mais além neste motor) e de todas as caraterísticas que já mencionámos, a K1 era inovadora noutras dimensões, o que faz lamentar ainda mais que as vendas tenham sido tão más!
Com uma preocupação ambiental digna desse nome, foi a primeira moto a apresentar um sistema catalítico de 3 vias! Nenhuma marca o tinha feito antes! A K1 acabou por lançar no mercado algo que se veio a tornar obrigatório muitos anos mais tarde! Claro que o facto de ser também um fabricante de automóveis ajudou, mas não deixa de ser interessante ver como este modelo ajudou a definir uma tendência!
A moto apresentava alguns dos melhores componentes que o mercado tinha para oferecer, caso de uma grossa suspensão dianteira da Marzocchi ou travões de disco enormes da Brembo com 305 mm à frente, mas trazia, ainda que como extra, um equipamento que depois se veio a tornar standard e até obrigatório.
Refiro-me ao sistema de segurança ativa ABS. Nos automóveis já era bastante comum até em segmentos médios no mercado, mas nas motos ainda não tinha chegado! A estreia coube à K1. O sistema podia ser ainda algo arcaico, pesado, intrusivo, mas veio reforçar a sua mais-valia também nas motos. Não reduzia a distância de travagem, mas garantia-a com mais segurança, nomeadamente em piso húmido e/ou escorregadio.
Mesmo dentro da família K da BMW, a que pertencia, o modelo distinguia-se por ser o primeiro a estrear o Paralever na transmissão por veio e cardã. Desta forma eram quase anuladas as vibrações na roda traseira, melhorando ainda mais a experiência de condução.
Mesmo com todos esses predicados não foi suficiente para lhe augurar um futuro radioso! Chegou com pompa e circunstância e acabou por sair pela porta pequena o que não invalida que, para mim, seja talvez a BMW mais marcante de sempre!
O facto de a produção ter sido baixa, muitas se terem perdido no tempo em acidentes, situações de abandono ou desleixo, transformações irreversíveis… leva a que só agora comece a ser apreciada e valorizada, mas ainda se encontra com uma relativa facilidade no nosso país, embora os preços comecem a ter uma nítida tendência para subir.
Correndo o risco de me repetir, a BMW K1 tem direito a um lugar na história não apenas da marca, mas também da indústria das motos. Foi tão inovadora que era para mim impensável, aparte o gosto pessoal, não lhe dedicar uma crónica.
A maior parte das fontes de informação não são portuguesas, embora o modelo tenha fãs em Portugal, apresentando-se agora alguns pontos de pesquisa.
BMW-K1: análise detalhada ao historial do modelo, com muitas imagens;
Sektork1: complementar ao anterior, também em inglês;
Turtlegarage: para quem quiser saber mais sobre este modelo;
BMWMotoclube: fórum nacional da marca. Informação também sobre este modelo;
Flyingbrick.de: fórum com imensa informação, mas em alemão;
Autoevolution.com: evolução detalhada do modelo;
Repairmanual: pode ser útil. Neste momento é de livre acesso.
Para o próximo número vamos subir novamente de cilindrada! O final do ano está cada vez mais próximo e a última crónica será publicada a 30 de dezembro.
Ficam agora a faltar apenas mais 5 números. 4 serão dedicados modelos dos fabricantes japoneses (1 de cada) e o último a uma marca sobre a qual ainda não nos debruçámos. O próximo será uma moto de 1100 cc cuja velocidade de ponta incrível e o razoável conforto faziam e continuam a fazer dela um veículo para quem gosta de andar realmente depressa. Durante vários anos teve o epíteto de “moto mais rápida do mundo”. Qual será? Até sexta-feira!
Texto: Pedro Pereira