Nota Introdutória:
Como previsto, a semana passada abordámos a terceira moto das 750 cc, a especial e icónica Moto Guzzi 750S, e prometemos que não íamos ficar por aqui. As duas primeiras motos desta cilindrada foram marcantes na competição, em especial na resistência e superbikes e também na estrada. As duas últimas são marcantes como motos de competição fora do asfalto e são motos de aventura, sendo que a Africa Twin é um clássico a que ninguém fica indiferente e que a Honda acabou por “ressuscitar” após uma dúzia de anos de interregno. Em boa hora o fez!
Tal como já indicámos, ao abordar a XT 500, os rallies ganharam uma incrível projeção no final da década de 70 e décadas seguinte, em especial o Paris-Dakar, e serviram também como “banco de ensaio” para motos muito marcantes, sendo que as marcas investiam fortunas colossais para chegar à vitória e a Honda não era exceção.
Como é habitual, muitos dos desenvolvimentos da competição, também nas motos, acabam por chegar depois ao produto que o comum dos mortais pode adquirir e os investimentos que as marcas fazem acabam por ser recuperados, projetados em vendas e notoriedade, algo que os japoneses sempre fizeram com excelentes resultados.
A primeira vitória da Honda ocorreu logo no ano de 1982 quando a Honda contratou Cyril Neveau, o piloto francês que tinha ganho as duas primeiras edições da prova aos comandos da Honda XT 500. Porém, a vitória deveu-se muito à sorte e ao engenho de Cyril, já que a BMW tinha ganho a edição de 1981 e viria a ganhar as três seguintes. A sua GS era, de longe, a moto mais potente de toda a caravana. Falaremos dela em breve.
Vamos ser claros! A moto que venceu o Dakar em 1982 era uma Honda XR (indicada como XL apenas por questões de marketing), mas muito modificada: aumento de cilindrada de 500 para 550 cc, potência de 36 cv originais passou para 45 cv, um radiador de óleo, outras suspensões, reforços no quadro e um gigante depósito de gasolina de 42 litros. Porém, era pouco contra a bicilíndrica da BMW e no Japão rapidamente perceberam isso, embora fossem continuando a desenvolver o seu monocilíndrico.
Assim, nos três anos seguintes a prova foi, passe o exagero, quase um passeio para o construtor bávaro! Juntava bons pilotos (Auriol em 1983 e Rahier em 1984 e 1985) a uma moto fiável, potente (cada vez mais), com um centro de gravidade mais baixo e a Honda ia engolindo em seco, enquanto se preparava para ripostar, o que veio a ocorrer novamente em 1986 e pelas mãos do fantástico Cyril Neveau.
Durante este tempo (de 1983 a 1986) a Honda foi comercializando a sua a XLV 750, com refrigeração ar/óleo, que serviu de “banco de ensaio” para a futura NXR. Era altura de o fabricante da asa dourada voltar à ribalta e o novíssimo motor bicilíndrico em V (pela primeira vez a marca não usava um bicilíndrico paralelo) estava a resultar muito bem.
Assim, Honda estudou bem a lição e a novíssima NXR 750 era o topo da competição, de tal modo que ganhou também em 87 (pelo mesmo Neveau), em 88 por Orioly e 89 por Lalay, sendo que em 90 o sucesso da Honda foi interrompido pela Cagiva Elefant, mas vamos focar-nos na NXR 750, verdadeira mentora da Africa Twin, moto escolhida para esta crónica.
A nova NXR tinha sido desenvolvida pela HRC (Honda Racing Corporation) com um único objetivo: vencer, sem olhar a custos ou limitações de qualquer ordem! Tudo era novo, começando pelo bicilíndrico em V a 45°, agora com refrigeração líquida, 780 cc e cerca de 72 cv! Podia até ser um pouco menos potente que a BMW, mas era também bastante mais leve (173 kg) e com um depósito de 55 litros de gasolina, muito alumínio e materiais exóticos para poupar no peso… era uma fórmula vencedora!
No japão rapidamente pensaram em lançar uma moto, baseada na NXR, mas menos radical em termos de comportamento, de materiais usados, mas sem nunca abdicar dos genes da competição e do espírito da aventura que a caraterizava e fazia sonhar tanta gente por esse mundo fora. Foi aí que surgiu a primeira “Honda Africana” que qualquer mortal podia ter, fosse para competir, viajar ou mesmo fazer dela uma moto capaz de utilizar no dia-a-dia.
N.º 29: Honda Africa Twin 750
Estamos em 1987. A Honda é a vencedora incontestável do Paris-Dakar e a marca tem pronta aquela que será uma das motos mais marcantes do século passado! A novíssima XRV ou, simplesmente, Africa Twin (AT). A sua versão NXR recuperava a sigla da NX (que já apresentámos na NX 250), mas agora a designação apontava para a vencedora de 1982 (XR), sendo o V obviamente da arquitetura do bicilíndrico que se veio a tornar quase uma “instituição” dentro da marca.
Aliás, a Honda “matou dois coelhos de uma cajadada só” e aproveitou para lançar uma versão um pouco menos aventureira logo em 1987, muito dedicada ao mercado europeu, a que deu o nome de Transalp e que se tornou também um sucesso, mas a que se tornou mesmo marcante foi a AT e é sobre ela que nos vamos focar.
Logo para começar, a novíssima Africa Twin (RD03) vinha com um visual quase decalcado da NXR, incluindo o padrão de cores, os dois faróis à frente, o depósito volumoso, as suspensões de longo curso, uma vistosa proteção de cárter, mas era muito mais que isso e o resultado foi o esperado: listas de espera para adquirir uma versão mais “civilizada” da NXR!
O motor tinha sido “encolhido” para 647 cc, relação curso/diâmetro de 79x76mm e debitava uns saudáveis 57 cv às 8.000 rpm e um binário de 55 nm, logo às 6.000 rpm. Tinha ainda refrigeração líquida, 8 válvulas, caixa de 5 velocidades, travão de disco à frente de 296 mm e atrás de 210 mm. Além disso, já vinha com jante 21 à frente (pneu 90/90-21) e atrás de 17 polegadas (sim, é mesmo verdade) com dimensões de 130/80-17.
Era uma moto grande, com um depósito de 25 litros de capacidade, um peso em ordem de marcha de 220 kg, uma altura ao chão de 215 mm e um selim colocado a uns elevados 880 mm. Se a isto adicionarmos as ótimas suspensões, ambas reguláveis e uma posição de condução endurista é fácil perceber que era uma moto fora de série, ainda que muito focada no TT e com poucas concessões para o asfalto.
Em 1990 a Honda dá o passo seguinte e lança uma nova geração, a primeira com a designação de 750 e que veio “atrás do prejuízo”, uma vez que a concorrência já tinha motos no mercado mais potentes e do mesmo perfil e não me refiro apenas à BMW ou à Cagiva, mas sobretudo à Yamaha XTZ 750 Ténéré que chegara ao mercado em 1989 e que será “dissecada” muito em breve.
Esta segunda geração da Africa Twin é a diretamente abordada nesta crónica. Ficou com o nome de código de RD04 e perdeu alguns genes da competição, mas ganhou muito mais, com especial destaque para o novíssimo motor que era um upgrade face à versão anterior.
Na eleita da semana, faço desde já um especial agradecimento ao Paulo pela disponibilidade e simpatia, o padrão de cores não é o mais badalado da HRC, mas na minha perspetiva isso ainda a torna mais rara e acaba por a valorizar, dando-lhe um cunho único, mesmo que possa não ser tão considerada pelos puristas que adoram o modelo.
O seu estado de conservação é francamente aceitável, mas está longe de ser uma moto de concurso e talvez ainda bem! É uma moto de aventura e faz todo o sentido que seja usada dessa forma! Umas saídas fora do asfalto, uns trilhos mais enduristas, talvez até uma escapadinha a Marrocos… estão nos genes desta moto!
Por outro lado, o facto de o marcador dos km’s ter um número de cerca de 82.500 km’s não deve assustar, mas é antes a certeza que já deu grandes alegrias a quem nela andou! O motor é de uma fiabilidade muito acima da média e desde que haja os cuidados óbvios (óleos e filtros, afinar válvulas, não abusar do motor a frio…) é um motor que aguenta facilmente o dobro da quilometragem sem intervenções de fundo.
Porém, não é indestrutível e há avarias mais ou menos comuns, caso do retificador de corrente, da bomba de gasolina ou dos próprios carburadores que têm uma tendência para perder gasolina, mas de um modo geral são problemas de pequena monta e mais que identificados. Mais graves podem ser as fissuras no quadro, sobretudo para motos usadas intensivamente em TT um com manutenção pouco cuidada e um anormal consumo de óleo.
Voltando a este espetacular exemplar de 1991, aparte as normais marcas de uso, há por ali vários upgrades que são mesmo uma questão de gosto pessoal: refiro-me aos crash bars com iluminação de gosto duvidoso e bastante exposta, o suporte do topcase, alguma digitalização nos comandos ou um muito útil vidro mais alto que não compromete a estética e melhora a conforto. Interessante que tem a ponteira de escape original, algo cada vez mais raro.
Estas pequenas alterações, reversíveis, acabam por tornar a moto ainda mais prática e utilizável no dia-a-dia, algo que não é impossível, muito pelo contrário, mas importa ter algumas noções básicas sobre o modelo, sobretudo para quem pondera adquirir um desta geração.
Logo para começar, a moto é bastante alta! Selim a 885 mm de altura e cerca de 230 mm do solo! Para os “perna curta”, como eu, é um problema! Aliás, é vulgar ver alguns exemplares rebaixados, seja ao nível do selim ou das próprias suspensões! Já agora, o selim é espaçoso até para o pendura. O grau de dureza do mesmo varia consoante a apreciação de cada um. Para mim é aceitável, mas para longas viagens asfálticas dispenso.
Por outro lado, é uma moto volumosa, direi mesmo grande e pesada em que o peso em ordem de marcha vai para além dos 230 kg, cortesia também do enorme depósito com quase 25 litros! Imaginando consumos na ordem dos 6 ou 7 litros dá sempre uma autonomia superior a 300 km’s, mas o motor é uma delícia e as suspensões reguláveis ajudam e de que maneira, mas a velocidades elevadas, tipo autoestrada, pode gerar-se alguma instabilidade e a moto é capaz de cerca de 180 km’s reais!
Dos seus 742 cc (81 x 72 mm de relação curso/diâmetro), três válvulas por cilindro (sim, são mesmo três) e uma única árvore de cames por cilindro são extraídos cerca de 62 cv às 7.500 e um binário de 62, nm obtidos às 6.000 rpm. Ou seja, um motor que se mostra bem cedo, mas que consegue alongar bastante (zona vermelha depois das 8.000). A sua zona de conforto é ali por volta das 5.000 ou 6.000 rpm em que é cheio e sem vibração. Se tivesse uma caixa de 6 velocidades seria ainda melhor.
Nota de destaque ainda para o sistema de travagem. Face à geração anterior (RD03) manteve, por exemplo, os mesmos pneus, mas adicionou um disco de travão à frente e melhorou uma das críticas que era feita na geração anterior. A evolução não se ficou por aqui e as mudanças para a geração seguinte (RD07) foram notórias, mas já lá vamos. No final desta geração, 1992, adicionou ainda o trip-master que não existia antes e lhe dava um ar de modernidade, apesar do tempo mostrar que não era um primor de fiabilidade.
Evolução da Africa Twin até ao final do milénio
Com um ciclo de cerca de 3 anos, a Honda decidiu que era altura de lançar uma nova atualização e em 1993 chegou ao mercado a versão RD07 e foi num caminho algo inesperado para alguns, previsível para outros: a opção foi tornar a moto mais universal, mais direcionada para o asfalto e menos para o fora de estrada, além de algumas concessões ao nível do equipamento, nomeadamente ao nível das suspensões.
Sejamos claros! A marca estava a desinvestir no Dakar (só voltou a ganhar em 2020, ou seja, 31 anos depois) e a sua aposta era agora mais na velocidade e nas vendas pelo que o caminho a tomar foi o óbvio: um modelo cada vez mais direcionado para as aventuras fora de estrada em modo mais soft e com mais caraterísticas asfálticas.
Assim a nova geração, com grafismos muito exuberantes, estava agora mais próxima do comum dos mortais e mantinha o mesmo motor. Porém, fez algumas cedências para uma utilização menos radical, reduzindo ligeiramente a altura ao solo, menos 20 mm, bem como a do próprio selim, que se reduziu em igual proporção, o que aliado à perda de 5 kg fez com que a “nova” moto se viesse a tornar de novo um verdadeiro best-seller, mesmo que “atraiçoando” um pouco aqueles que a consideravam uma “big trail endurista” e se sentiam agora mais defraudados.
Para piorar, aparte a perda da regulação da suspensão dianteira, perdeu a indicação luminosa da reserva, algo que fazia imensa falta e as duas torneiras! Como se não bastasse, os problemas na bomba de gasolina vieram agudizar-se, bem como as fissuras no quadro e até junto dos poisa-pés.
Em 1996 dá-se a última renovação do modelo, sendo que a sua produção se foi depois prolongando sem alterações de grande monta até 2003 (mais questões de natureza estética, tipo faróis ou na carburação por causa das emissões). Esta geração foi designada por RD07a, deixou de ser integralmente produzida no Japão como as anteriores, sendo que pelo menos o mercado europeu passou a ser abastecido pelas Africa Twin montadas em Espanha pela sua “afiliada” Montesa.
Dizem as más-línguas que na derradeira geração, antes do interregno que durou uns longos 13 anos, a marca decidiu fazer alguma contenção ao nível dos custos, reduzindo nos atributos de alguns materiais e equipamentos o que veio a causar alguma perda da qualidade do produto. Mesmo que seja verdade não alterou muito o facto de ser uma moto muitíssimo apreciada em qualquer uma das suas gerações e cada vez mais próxima do trail e mais longe do enduro.
A fama, e proveito, é de tal forma elevada que surgem na atualidade alguns exemplares de Honda Africa Twin (RD, não importa a geração) quase ao preço das AT 1000 que foram lançadas em 2016 (SD04)! Provavelmente é um exagero e uma tentativa de aproveitamento, mas reforça o óbvio: a Africa Twin, sobretudo nas declinações 750, ganhou um lugar cativo na história! Começou por ser uma pura moto de competição e acabou por ser uma moto com um carinho e uma admiração difícil de igualar!
Acresce ainda que muitas têm sido alvo de customizações, como scramblers, o que leva a que conseguir exemplares num bom estado é cada vez mais complicado, sem descurar que algumas peças, sobretudo nas gerações iniciais, são mesmo difíceis de obter e desincentivam a realização de mais restauros.
Dada sua popularidade e interesse que continua a despertar, existem algumas fontes de informação portuguesas, o que não invalida que a maioria sejam em outras línguas. Deixam-se alguns pontos de pesquisa.
AfricatwinPortugal: fórum que é um bom ponto de partida e português;
Trailaventura: tópico muito interessante sobre o modelo e sua evolução;
Visordown: história do modelo, com muitas imagens;
Africatwinforum: como o nome indica. Fórum com imensa informação, todas as gerações;
Africatwin.org: mais um fórum repleto de informação, mais na geração atual do modelo;
Advrider: fórum especializado em motos de aventura, mais de 800 páginas sobre a 650 e 750;
XRV.org: fórum especializado em todas as trail da Honda, com destaque para a Africa Twin;
Motorandwheels: análise à fiabilidade do modelo, com exemplos práticos.
Para o próximo número vamos continuar por esta cilindrada, mas será a última moto antes de voltarmos a subir. 5 motos na mesma cilindrada já é suficiente! A da semana que vem era uma grande adversária da Africa Twin, nas pistas de terra batida e fora delas, sendo que também deixou a sua marca no rally Paris-Dakar e fora dele! Até sexta-feira!
Texto: Pedro Pereira