A primeira marca a sagrar-se Campeã do Mundo de Velocidade sem ser fabricante de motos em série, a Morbidelli, renasce das cinzas rumo a um futuro que se antevê risonho e bem diverso, pela mão do Grupo Keeway.

Por: Luís Carlos Sousa
Fotos Arquivo e MBP Morbidelli
Triunfar num meio tão competitivo como o Mundial de Velocidade é algo que, desde logo, está ao alcance de poucos. E se, hoje, o triunfo de uma equipa privada no elitista universo dos Grandes Prémios não constitui uma novidade – e muito menos o era na década de 1970 –, já a conquista de um título de Campeão do Mundo por parte de um construtor que não era fabricante de motos em série, nem sequer dispunha de modelos para vender ao público, foi uma estreia absoluta em 1975, ano em que que Paolo Pileri se sagrou Campeão Mundial de 125 cc aos comandos de uma Morbidelli.

Pierpaolo Bianchi repetiria o feito nesta categoria em 1976 e 1977, sendo que, neste último ano, se somaria o título mundial de 250 cc ganho por Mario Lega. A estas quatro coroas de pilotos (e três de construtores) podem acrescentar-se ainda os dois títulos da MBA, marca criada em conjunto com a Benelli Armi para construir motos de competição-cliente que vieram a preencher quase por completo as grelhas de GP125 nas épocas seguintes.

Italiano de Pesaro, na costa do Adriático, região que sempre foi – e continua a ser – berço de muitos pilotos e construtores que fizeram a história do motociclismo, Giancarlo Morbidelli (1934-2020) reunia duas condições que o talharam desde logo para o sucesso: as suas capacidades como empresário e o génio para a engenharia mecânica. Estas qualidades foram os motores para a criação em 1959, aos 25 anos de idade, de uma empresa dedicada ao fabrico de maquinaria para serração de madeira e marcenaria.

Os seus produtos rapidamente se afirmaram como dos mais avançados do sector, sendo exportados para todo o mundo, e o capital que entrava na Morbidelli deu-lhe a alavanca necessária para se lançar em mais uma aventura. É que, para além dos seus talentos para a gestão e mecânica, Giancarlo Morbidelli tinha também uma grande paixão pelas motos e, em especial, pela competição. Foi assim que em 1968, num canto da sua fábrica de Pesaro, nasceu o projeto de criar e fazer alinhar uma moto no Mundial de Velocidade. Curiosamente, no mesmo ano em que nasceu o seu filho Gianni, que fez carreira como piloto de Fórmula 1 durante boa parte dos anos ‘90.

Nesse primeiro ano, Giancarlo inscreveu Luciano Mele pela equipa Morbidelli com uma Benelli 60 e uma Motobi, conquistando o título italiano júnior de Velocidade. Em 1969 surgiu a primeira moto Morbidelli, uma 50 cc a dois tempos, projetada com a ajuda do engenheiro e piloto Franco Ringhini, inspirando-se nas Suzuki que, no início da década, tinham posto a nu os segredos dos motores a dois tempos, copiados à MZ na sequência da conhecida história de espionagem industrial que teve Ernst Degner como protagonista.

Seguiu-se uma 125 cc de Grande Prémio, uma bicilíndrica com válvulas rotativas (a imposição regulamentar das monocilíndricas em 125 cc só surgiria em 1988), que em 1970 foi entregue a Gilberto Parlotti e Eugenio Lazzarini. A Morbidelli 125 começou a vencer logo desde o início, primeiro em Itália e, nesse mesmo ano, no Mundial, com Gilberto Parlotti a ganhar o G.P. da Checoslováquia de 1970, em Brno. No ano seguinte Parlotti voltaria a vencer, desta vez em casa, no G.P. das Nações em Monza, subindo ao pódio na frente da Derbi de Ángel Nieto e da Suzuki de Barry Sheene.
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Em 1972, Parlotti e a Morbidelli entraram ‘com tudo’ no Mundial de 125, vencendo os dois primeiros Grandes Prémios em Nürburgring e Clermont-Ferrand, seguindo-se um 2º lugar em Salzburgring e um 3º em Imola, reforçando o seu comando do campeonato. Mas, a 9 de junho, Gilberto Parlotti viria a morrer na sequência de um acidente no Tourist Trophy da Ilha de Man, quinta prova do ano, quando liderava a corrida à segunda passagem. A tragédia afetou profundamente Giancarlo Morbidelli, que chegou a considerar o abandono das competições.

Do sonho à glória
Mas, no final dessa temporada de 1972, confrontado com a ausência anunciada da Derbi no ano seguinte, Ángel Nieto testou a Morbidelli e alinhou pela marca de Pesaro no Mundial de 125 cc em 1973. No entanto a falta de fiabilidade da moto impediu o Maestro de conquistar o tricampeonato. Foi, aliás, a única época, entre 1969 e 85, em que Nieto não venceu uma única corrida. Para tentar manter o campeoníssimo espanhol na equipa, foram feitos contactos com um conceituado especialista de motores 2T, o alemão Jörg Möller, grande responsável pelos sucessos da Kreidler nos G.P. de 50 cc, mas o prazo que Möller apontou, de pelo menos um ano para tornar as Morbidelli competitivas e fiáveis, não era condizente com as ambições mais imediatas de Nieto, que saiu para dar o seu lugar a Paolo Pileri.

Nas últimas provas de 1974 as novas 125GP desenhadas por Möller começaram a dar os seus primeiros sinais de competitividade, mas a glória só chegaria no ano seguinte: em 1975, Paolo Pileri venceu sete dos 10 Grandes Prémios dessa época rumo ao título de Campeão do Mundo, secundado pelo seu novo companheiro de equipa na Morbidelli, Pierpaolo Bianchi. No ano seguinte foi a vez de Bianchi conquistar o título à frente da Bultaco de Nieto, repetindo o feito em 1977, ano em que, entre os 36 pilotos que pontuaram, nada menos que 29 fizeram-no aos comandos de motos Morbidelli – embora a maioria fossem já as MBA de competição-cliente feitas em colaboração com os seus conterrâneos de Pesaro, os irmãos Benelli, que só surgiriam com o nome MBA a partir de 1978.

A Morbidelli tinha, entretanto, alargado a sua presença às 250 e 350 cc, com Mario Lega a conquistar o título mundial de ‘dois e meio’ em 1977, ao cabo de um ano verdadeiramente épico para a marca. As Morbidelli também chegaram a estar presentes na classe rainha, as 500 cc, primeiro com uma ‘square four’ e depois com uma V4, nas mãos de Graziano Rossi e Giovanni Pelletier durante o final dos anos setenta, mas sem nunca terem conseguido resultados de monta.
Em 1981, Giancarlo Morbidelli encerra o seu departamento de competição e começa a dar atenção à carreira do seu filho Gianni nos automóveis rumo à Fórmula 1, onde chegaria em 1990. Entretanto, em 1987, a empresa é vendida ao Grupo SCM e Giancarlo parecia estar definitivamente afastado das duas rodas, até que, em 1990, funda uma nova empresa para se dedicar, pela primeira vez, ao fabrico de um modelo de produção em série. Mas não se tratava uma moto qualquer…

A moto mais cara do mundo
Em 1994 é apresentada no Salão de Milão aquela que passaria a ser a moto de produção mais cara de sempre, a Morbidelli V8, com um oito cilindros em V desenhado pela Cosworth, baseado no conhecido motor DFV que dominou a Fórmula 1 durante décadas. Mas se as suas linhas, assinadas pela Pininfarina, não entusiasmaram o público, muito menos o preço de 45 mil dólares a que foi anunciada na altura… Em 1996 o projeto foi redesenhado com a ajuda da Bimota e o preço subiu para os 160 mil dólares – aqui sim, chegando ao Guinness Book of Records como a moto mais cara da história. Para além do protótipo, acabaram por ser produzidos apenas três exemplares: um ficou na coleção Morbidelli, outro no Barber Museum e um terceiro nas mãos de um colecionador particular.
A V8 que tinha ficado na posse do seu criador passou a ser parte das 350 motos que foram integrando o Museu Morbidelli, fundado em Pesaro em 1999 no espaço da sua antiga fábrica. Tratava-se de uma coleção que Giancarlo Morbidelli tinha começado a reunir desde novo e que incluía exemplares únicos, como as suas Campeãs do Mundo e muitas outras preciosidades de várias marcas.
Mais tarde, com a sua saúde de Giancarlo Morbidelli a deteriorar-se após uma longa luta contra a doença de Alzheimer, no verão de 2019, menos de um ano antes deste ter falecido em fevereiro de 2020, aos 85 anos de idade, desapareceu o Museu Morbidelli, com todas as motos da coleção a rumarem a Inglaterra para serem leiloadas, numa ação que fez correr muita tinta em Itália, devido ao valor da coleção Morbidelli enquanto património histórico da indústria italiana.
Terminava assim, de forma inglória, a épica trajetória de um homem que sonhou e fez acontecer, que triunfou nos maiores palcos contra os gigantes da indústria, mas que agora pode manter vivo, se não o seu legado – o tempo o dirá – pelo menos o seu nome.
Morbidelli e MBP Moto
Depois de um passado glorioso nas pistas do Mundial de Velocidade, nas últimas décadas a Morbidelli – que não tem qualquer relação com o piloto de MotoGP Franco Morbidelli, mas sim com o ex-piloto de F1 Gianni Morbidelli, filho do fundador – manteve-se apenas ligado à indústria que lhe esteve na origem, a da serração e marcenaria, através do SCM Group, conglomerado do sector que continua a integrar a empresa fundada por Giancarlo Morbidelli. A ligação às motos, que permanecia através do museu por si criado e mantido, tinha desaparecido com a sua morte no início de 2020, sendo inesperadamente reavivada em abril de 2024, altura em que a imprensa recebeu um comunicado da MBP Moto, marca criada pelo grupo Keeway em 2021, dando a conhecer a aquisição da marca Morbidelli, nascendo assim a nova Morbidelli MBP, uma marca de capital chinês, sediada em Bolonha e cheia de projetos para o futuro.
Segundo o texto então divulgado, a gama da Morbidelli MBP consistiria em motos estradistas e ‘crossover’ entre os 125 e os 1000 cc, para além de scooters de 125 a 500 cc e, ainda, de uma linha de motos e scooters elétricas. Os planos do Grupo Keeway para a sua nova marca incluíam ainda a criação em Bolonha de um centro de pesquisa e desenvolvimento, bem como do ‘Centro Stile Morbidelli’, para explorar novas tecnologias, materiais e conceitos de design.
Estes planos, que estavam bem adiantados na altura da divulgação da notícia e aproveitam as sinergias tecnológicas e de produção existentes com as restantes marcas do grupo, são hoje realidade, com uma gama que, para além de scooters de 125 e 300 cc e da naked M502M, conta ainda com duas imponentes ‘mil’ com motor v-twin, a cruiser C1002V e a trail T1002VX, cujas características técnicas e outras informações podem consultar no site www.morbidelli.com, com o teste da T1002VX já publicado na nossa edição de abril deste ano. E mais estará para vir!