Nota Introdutória:
Como indicado na semana passada, vamos ficar-nos pelo Japão durante mais algumas semanas e nas motos de meio litro. A semana passada a eleita foi a CB 500 Four e agora vamos apreciar uma moto de caráter dual, uma trail, ainda que sem demasiadas aspirações para o todo terreno, mas o facto é que tinha imensos atributos e, mesmo hoje, continua a ser bastante popular no nosso país e encontra-se com muita facilidade.
É a primeira vez, de todas as crónicas até agora publicadas, que nos vamos debruçar sobre um modelo da marca de Akashi pelo que vale a pena partilhar convosco um pouco da história desta grande marca que, tal como a Suzuki ou a Yamaha, não tem as motos na sua génese, mas já lá vamos.
É preciso recuar muito no tempo, para os mais eruditos pode ser analepse. Vamos até 1837, ano de nascimento de Shozo Kawasaki, mais precisamente o dia 2 de dezembro em Kagoshima. É este o ponto de partida para a Kawasaki Heavy Industries da qual faz parte a Kawasaki Motos.
Foi este empreendedor que fundou os estaleiros navais em Tsukiji em 1878 e, mais tarde, em 1896 a empresa ligada à construção naval que passa a denominar-se Kawasaki Dockyards Co, Ltd e a diversificação da atividade industrial começa aqui: constrói barcos, aviões, autocarros, maquinaria pesada… e tudo corre bem até à Segunda Guerra mundial em que o esforço de guerra exige todos os recursos disponíveis.
Já sabemos o resultado da guerra, a devastação do Japão a necessidade de meios de transportes económicos e baratos…. Mas apenas em 1952 a Kawasaki produz o seu primeiro motor para motos, o KE-1, que vende a outras marcas, incluindo à popular Meihatsu.
Só 5 anos depois, com o motor KB-5, 125 a 2 tempos, a marca começa-se a considerar uma verdadeira produtora de motores, mas é preciso esperar ainda mais 5 anos para ter uma moto completamente Kawasaki: a B8, com motor 125 cc a 2 tempos e a inscrição “Kawasaki Aircraft”.
Foi este o verdadeiro ponto de partida para a marca! Daí para a frente a Kawasaki começa a sua caminhada rumo à fama e ao estrelato! Primeiro nas 2 tempos, com um forte envolvimento na competição, na estrada e fora dela, verdadeiro laboratório para futuros modelos.
Em 1966 lançam a W1650 que ganha o título de maior moto fabricada no Japão e logo a 4 tempos, ainda antes de icónica CB 750 Four que abordámos a semana passada! Era um monocilíndrico bem à frente do seu tempo, mas o sucesso chega de verdade com as suas Mach (I, II, III e IV a 2 tempos) e sobretudo a Z1, de que também já falámos!
Interessante que foi a primeira marca japonesa a iniciar a produção de motos nos Estados Unidos, mostrando um grande sentido de visão ao criar aí uma fábrica em Lincoln (Nebraska), no ano de 1975, algo que foi depois seguido pelos outros construtores japoneses.
Muitas outras conquistas e sucessos, na competição e fora dela se vão conseguindo, com motos emblemáticas como a família KR, Ninja, GPZ, ZX, KL (E, X, R), KX… Mesmo sabendo que as motos dentro do grupo Kawasaki Heavy Industries são apenas um dos seus braços, o facto é que a marca soube sempre ir-se adaptando ao mercado e conquistar uma áurea de motos desportivas, “raçudas” e menos dadas a compromissos que as suas familiares, também nipónicas.
Ao contrário das outras três marcas japonesas, a Kawasaki nunca optou por representação própria em Portugal e foi oscilando ao sabor dos seus vários importadores. O ponto negativo dessa decisão, talvez justificada pela pequena dimensão do nosso mercado, foi óbvio: por várias vezes a marca não teve suficiente acompanhamento em solo nacional o que levava os potenciais compradores a ter que optar por outras marcas, mesmo que o seu coração fosse verde! O verde Kawasaki!
N.º 18: Kawasaki KLE 500
A ideia desta “dual sport” deve ter nascido da tentativa de encontrar uma forma de “combater” a concorrência com um investimento menor, já que tinha no banco de órgãos da marca o pequeno motor bicilíndrico paralelo de 498 cc, com refrigeração líquida, dupla árvore de cames, oito válvulas… que já vinha da GPZ de há alguns anos atrás. Era robusto, muito rotativo e de uma fiabilidade a toda a prova!
A concorrência era praticamente toda de monocilíndricos 600 ou 650 cc (XT 600/660, DR 600/650, NX 650, mais tarde a Pegaso, a F650…) e ainda a bicilíndrica Transalp 600 e, mais tarde, 650. Logicamente, a pequena KLE partia em desvantagem! Sempre eram menos 100 ou 150 cc, mas como bem sabemos, menos pode ser mais!
Assim, quando chegou ao mercado em 1991, a KLE causou uma excelente impressão e vinha logo com uma vantagem importante: pertencia à categoria abaixo, ou seja, menos de 500 cc, o que em vários mercados era determinante em termos de carta de condução, de impostos a pagar ou até do valor do prémio do seguro!
Não podemos também esquecer a questão do preço que também jogava a seu favor: em 1992 uma KLE 500 custava 913 contos, a Suzuki DR 650 RS custava 986 contos, a Honda NX 650 Dominator tinha um preço de 990 contos, a XTZ 660 custava 994 contos e a Transalp 600 (ou XV) já ia para os 1090 contos! Apenas a XT 600E custava menos: 897 contos, mas era bastante mais despida!
Por outro lado, a estética muito peculiar, onde se incluía uma proteção de motor gigante, um escape em posição elevada, duas tubagens para admissão de ar ou as cores algo arrojadas, como esta roxa, ajudavam a que dificilmente passasse despercebida e as vendas foram muito interessantes, mesmo em Portugal!
A que aqui vos apresentamos (muito obrigado Alexandre, pela disponibilidade e simpatia) é um bonito exemplar e logo do primeiro ano de comercialização, ou seja, de 1991, o que a torna ainda mais interessante. Podem não ser as mais fiáveis (as marcas vão limando arestas), mas na maior parte dos casos as motos dos primeiros anos de produção acabam por ser as mais procuradas, por razões óbvias de raridade…
Marca apenas 32.000, cerca de 1.000/ano e é, acima de tudo, uma moto para utilização em período de férias ou alguns fins de semana, sendo que o seu dono a carateriza bem quando a adjetiva: é muito versátil, fácil de conduzir, intuitiva, divertida, ideal até para pequenas saídas do asfalto, como ilustram os pneus de uso misto…
Ou seja, resume perfeitamente o que marca procurou com o seu lançamento! Nada de demasiadas ambições, mas uma moto que fosse algo distintiva e que fosse capaz de proporcionar bons momentos ao seu condutor, com ou sem pendura, mesmo em pisos de má qualidade, mas sem extremismos que para isso existia a KL 650, mais tarde KLR e KLX 650!
De entre as principais queixas (respeito pelos seus 30 anos) há o comum problema de motos de carburador em colocar em funcionamento após muito tempo paradas. Não é defeito, é mesmo feitio e o problema de “desferrar” o sistema é muito vulgar. Solução: andar com mais frequência!
Os piscas frontais já não são originais e partem com facilidade. A “ponteira” de escape tem tendência para apodrecer (tem uma da marca Speed), os travões são apenas suficientes e piora com carga e pendura (estamos no início da década de 90). Os consumos, facilmente abaixo dos 5 litros aos 100, disparam se usarmos o acelerador com vontade, o que é normal uma vez que o binário máximo de cerca de 40 Nm aparece por volta das 7.000 e os quase 50 cv só perto das 8.500!
A zona vermelha começa apenas por volta das 11.000, mas é desnecessário ir para além das 9.000 rpm! Não há muito mais para dar, os consumos tornam-se vorazes e os 15 litros do depósito desaparecem num instante, além de que começa a surgir do bicilíndrico paralelo uma indesejada vibração. Está na génese um motor “de corridas”, mas esta moto não o é!
Se quisermos mesmo “espremer” o motor é ainda fundamental não deixar “cair” muito a rotação, ou seja, usar de forma mais agressiva o acelerador e a suave e precisa caixa de 6 velocidades, mas com a noção de que a embraiagem vai acabar por sofrer bastante!
Tem por ali umas marcas da idade, mas o facto é que nunca foi alvo de restauro profundo e maior destaque merece ainda o facto de não ter praticamente ferrugem, apesar de viver próximo do mar, mas não dorme ao relento que é um aspeto muito importante para a conservação de qualquer moto, independentemente da marca!
Resumindo, continua a ser uma moto muito agradável, aparece com frequência no mercado, a preços aceitáveis e não costumam dar muitas chatices graves, embora seja comuns problemas ao nível do volante magnético (reparação complexa, mais vale pensar logo na substituição) e algum consumo de óleo, mas é mesmo questão de andar atento.
Ainda uma nota de destaque para os manómetros que são bastante diferentes do que estamos habituados, com as luzes avisadoras por ali espalhadas, sem um indicador da temperatura (apenas uma luz que se acender é mesmo mau sinal) e letras e números com tonalidade esverdeada. Primeiro estranha-se… e já sabem o resto!
Um motor… 4 motos diferentes!
Era verdade na década de 80 e 90, e continua a ser hoje: economias de escala permitem reduzir custos de produção, eventualmente diminuir os preços finais e, muito importante, engordar os lucros dos acionistas! Afina de contas, também na indústria de motociclos os proveitos são o objetivo final ou mais vale logo fechar as portas!
Perfeitamente ciente disso, a marca avaliou as possibilidades de ir desdobrando este motor, numa espécie de milagre da multiplicação e com bons resultados:
Primeiro foi lançado ainda na década de 80, mais precisamente em 1987, com a GPZ 500. Uma verdadeira “MiniGP”, capaz de boas prestações do pequeno motor, na senda da GPZ 600R. Foi evoluindo a moto ao longos dos anos, por exemplo em termos estéticos ou do sistema de travagem que evoluiu de um tambor traseiro e um disco dianteiro, para 2 discos à frente e um atrás. Teve uma longevidade incrível, sendo que a sua produção se prolongou até ao início deste século!
Em 1990, um ano antes da KLE, a marca lançou a EN 500 (em alguns mercados Vulcan), tendo sempre como base o bicilíndrico paralelo que contrastava com os habituais motores em V da concorrência. Uma vez mais, a longevidade do modelo/motor foi extensa e terminando apenas já neste século.
Ainda não satisfeita, em 1996 a marca lançou a ER-5, que usava a mesma base mecânica numa moto mais do tipo utilitária (commuter), sem grandes adereços estéticos e destinada combater outras motos de entrada de gama, caso da Honda CB 500 ou da Suzuki GS 500. Também neste caso a produção se prolongou pelo século XXI.
Quatro produtos distintos a partir de um único motor é de facto algo interessante e, mais ainda, a forma como o caráter do motor se revela de forma diferente entre os vários modelos, sobretudo na GPZ que é, na minha perspetiva, o “motor” mais interessante por uma razão óbvia: é o mais potente!
Na prática são mais quase 10 cv, obtidos bem lá acima! Em vez do pico de potência da KLE às 8.500 com praticamente 50 cv, foi-se até às 9.800 rpm para encontrar cerca de 60 cv! É um motor mais “pontudo”, sobretudo graças a umas cames mais agressivas e uma carburação diferente, além de duas saídas de escape traseiras. A diferença sente-se nitidamente e “casa” muito bem com uma moto de cariz mais “desportivo”.
Conheci um caso de uma pessoa que tinha uma KLE 500 que teve uma avaria grave no motor (bomba de óleo que entupiu, motor para o lixo) e encontrou um motor de uma GPZ acidentada. Basicamente o procedimento foi “plug and play” de um quadro para o outro e ele afirmava que a performance do novo motor nada tinha a ver com o que lá estava antes!
Para facilitar a subida de rotação “encurtou” um pouco a transmissão final, por exemplo com mais 2 ou 3 dentes na cremalheira e dizia, meio a sério meio a brincar, que tinha tornado a sua moto infernal, mesmo que consumindo mais um pouco de gasolina!
Mesmo para viajar, a KLE 500 é uma moto que não desilude, desde que se tenha a perceção das suas limitações. É possível fazer várias melhorias, por exemplo ao nível do conforto do selim (rapidamente se torna cansativo/duro e costuma ser escorregadio), da proteção aerodinâmica (muitas opções no mercado), da suspensão dianteira (mudando o fluído ou, melhor ainda, com outras molas) ou da travagem (pastilhas com diferente composição e tubos de malha de aço ajudam muito).
A produção cessou por volta do início do milénio e, mais tarde, a marca decidiu “renascer” o modelo apenas com uma atualização estética (farol dianteiro diferente, novas cores…) e um ecrã mais alto. Para fazer face às novas normas antipoluição foi necessário alterar o escape com um complexo sistema catalítico e o resultado foi óbvio: diminuição significativa das prestações! Perderam-se quase 10 cv e uma oportunidade de “atualizar” um clássico!
O modelo merecia melhor sorte! Nitidamente não foi suficiente este “refrescamento” e nos 3 ou 4 anos de comercialização as vendas foram sempre residuais. Resumindo, se estiver à procura de uma, talvez seja logo melhor partir para a versão original! Fica a dica!
Como vai sendo habitual, as principais fontes de informação são em outras línguas, tirando as eventuais revistas especializadas portuguesas, caso da Edição Especial da Revista Motociclismo, de 2017, Made in Japan: a história da Indústria Japonesa. Esta revista acaba por ser muito útil para um maior conhecimento das 4 marcas nipónicas.
Firstversions.com: origens da marca, no que às motos diz respeito;
KawasakiKLE500: possibilidade de descarregar manual completo (401 páginas);
Eatsleepride: Descrição sumária do modelo;
KawasakiKLE500Forum: fórum italiano, com muita informação;
Adventurerider: fórum com vários tópicos sobre o modelo;
Motociclismo: teste da revista espanhola, de 1994, com bastante detalhe;
Bikechatforums: tópico para quem quiser pensar num swap de motor da GPZ para a KLE.
Para o próximo número vamos continuar nesta cilindrada e no Sol Nascente. Vamos falar sobre uma moto muitíssimo popular em Portugal e que foi a primeira “moto grande” de muita gente, além de ter sido intensamente utilizada nas escolas de condução ou para trabalhos de estafeta e muitas continuam por aí a rodar! Até sexta-feira!
Texto: Pedro Pereira