A década de 80, do século passado, foi muito magnânima no que à oferta de motos do tipo trail diz respeito. Aliás, pode afirmar-se que as motos com reais capacidades de viajar não apenas por alcatrão, mas por trilhos acidentados, com conforto e segurança, começaram a afirmar-se nessa época, em boa medida graças à pioneira Yamaha XT 500 e, logo a seguir, pela inovadora BMW R 80 G/S

Por: Pedro Pereira
Fotos: Paulo Calisto
Numa primeira fase, as trail eram muito direcionadas para o off-road. Basta pensar que o Rally Dakar se estava a afirmar à escala global, mas as marcas começaram a perceber que nem toda a gente procurava motos tão especializadas para o off-road e que havia um mercado a desbravar, nomeadamente na Europa e Estados Unidos. É nesta lógica que a Honda começa a estudar o lançamento da sua Honda XL 600V ou, simplesmente, Transalp. Um nome que se veio a tornar num ícone.
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História da Transalp
As motos de caráter “dual” já existiam, mas a Honda quis ir mais longe. Uma moto que não fosse demasiado pesada ou radical, que permitisse viajar com um nível aceitável de conforto, apoiada num motor fiável e robusto e até na capacidade de poder transportar passageiro e bagagem.
A marca tinha ganho o Rally Dakar em 1982 com Cyril Neveau aos comandos de uma XR550, mas esta era demasiado exigente e não servia os propósitos de uma Rally Touring, como o exemplar de que vamos falar ostenta, orgulhosamente, nas carenagens laterais.

Foi no ano de 1986 que a primeira Transalp viu a luz do dia e a escolha desse nome não foi inocente: desenhada muito a pensar nos europeus, daí a alusão à cadeia montanhosa dos Alpes, a Honda acertou em cheio e a moto rapidamente se tornou um sucesso no mercado europeu, sendo que só mais tarde, em 1989, chegou ao mercado norte-americano.

O motor bicilíndrico em V, a 52°, mostrou ser uma escolha acertada sendo, ao mesmo tempo, económico, fiável e divertido. Além disso a posição de condução era agradável, a moto tinha boa proteção aerodinâmica, um assento muito confortável e as suspensões davam conta do recado, apesar de muito permissivas. Apenas a travagem merecia reparos, nomeadamente atrás, em que era equipada com um tambor, algo que foi corrigido ainda ao longo da vida útil da primeira geração, com a adoção de um disco
Teve uma vida muito longa (na atualidade os ciclos de vida dos modelos são mais curtos), sendo que só em 1999 conheceu uma nova geração com a Transalp 650 cc, mas vamos focar-nos neste exemplar de 1993, propriedade do Jacinto Paixão.

Transalp 600: Rally Touring de muitas virtudes
A moto representava uma verdadeira rotura com as “dual” que existiam antes. Logo para começar o motor de dois cilindros era de uma suavidade incomparável e o conforto da sua condução era algo completamente diferente do que existia anteriormente.
Depois os cerca de 50 cv, para um peso a cheio a rondar os 200 kg, garantiam-lhe performances muito interessantes, mesmo com bagagem e passageiro. Uma autonomia do depósito de 18 litros que podia chegar aos 300 km’s, era fantástico, nomeadamente numa altura em que os postos de combustível eram bem menos que na atualidade.

As duas caraterísticas saídas de escape na lateral direita ainda lhe davam mais encanto, tal como a gigante proteção do cárter/motor, como que a convidar à evasão e ao fora de estrada. Em rigor, o “off-road” nunca foi uma grande virtude da Transalp, nem pretendia ser. A reduzida altura ao solo, cerca de 190 mm, e as suspensões muito macias comprometiam essa ambição.
Por outro lado, com o assento a cerca de 850 mm do solo era a garantia que não era preciso ser um gigante para a poder conduzir sem dificuldades. Destaque ainda para o completo painel de instrumentos (neste exemplar marca apenas 23.700 km) e para as proteções de mãos, elemento importante de conforto para viajar.
Mesmo na atualidade continuam a existir muitos exemplares a circular e os problemas mais comuns estão perfeitamente identificados, caso de algum consumo de óleo, sobretudo em exemplares com mais quilómetros, cdi que avariam, escapes que acabam por apodrecer ou fugas no radiador.

Impressões de condução
É fácil deixar-se encantar pelo excelente estado de conservação deste exemplar. Não foi alvo de qualquer restauro e está certificado como Motociclo Clássico pelo Museu do Caramulo. Facilmente se percebe a excelente qualidade de construção, o bom estado dos plásticos, borrachas, aros e até os raios das rodas, que tendem a oxidar, são originais. Apenas num olhar mais atento se percebe que os piscas traseiros, algo frágeis, não pertencem aqui.
Destoa a top-case atual e respetivo suporte, mas é algo que pode ser removido em qualquer altura, sem deixar rastos, ou seja, não é algo irreversível.
A posição de condução é muito boa, apesar do assento ser tão mole que, para os padrões atuais, até se torna estranho. Com o motor frio, o procedimento é rodar a chave de ignição “puxar o ar” (em rigor é o efeito inverso pois estamos a diminuir o ar admitido pelos carburadores face à gasolina) e o motor acorda para a vida com um ronronar caraterístico e uma suavidade que faz corar de inveja muitos motores modernos. Apenas temos de esperar algum tempo para que a temperatura do motor estabilize e depois os dois Mikuni CV de 32 mm cumprem a sua função.
A embraiagem, ainda que algo pesada, não deixa de ser suave e a forma como vamos ganhando velocidade é encantadora, tudo com muita suavidade, sem sustos ou reações inesperadas. Uma moto verdadeiramente bem-nascida.
Cumprindo os limites legais a proteção aerodinâmica é suficiente e só mesmo em velocidades mais elevadas ou com a rotação acima das 6000 rpm se começa a sentir alguma vibração do motor que acaba por se transmitir a todo o corpo, mas se for em quinta velocidade, já vai rolar muito para além dos limites legais…
Apesar das suspensões macias, consegue curvar com bastante à-vontade, mas convém não abusar, até porque tem pneus mistos e a conjugação de uma roda de 21 polegadas à frente com uma traseira de 17 pode limitar a ação.
De noite a iluminação é apenas sofrível, mas é algo comum em motos desta época, sendo que o ponto mais fraco da moto é outro: a travagem. Já tinha sido implementada, em 1991, a adoção de um travão de disco traseiro, mas só com a adoção de um segundo disco dianteiro, em 1997, é que a travagem ficou ao nível das restantes qualidades da moto.
Notas finais
A Transalp é uma moto verdadeiramente intemporal, mas nenhuma foi tão impactante como a primeira geração, sendo que a Honda teve depois uma segunda (2000 a 2007), uma terceira (2008 e a 2012), sempre com o caraterístico motor em V. Depois de um longo interregno, em 2023, lançou a quarta geração sendo que, pela primeira vez, adotou um bicilíndrico em linha, mas dificilmente há amor como o primeiro.
Pontuação:
Estética | 4 |
Prestações | 4 |
Comportamento | 3,5 |
Suspensões | 3,5 |
Travões | 3 |
Consumo | 4 |
Preço | 3,5 |
Ficha técnica:
Motor | Bicilíndrico em V (52°), quatro tempos, refrigeração líquida |
Distribuição | 3 válvulas por cilindro, uma árvore de cames por cilindro |
Cilindrada | 583 cc |
Potência | 50 Cv às 8000 rpm |
Binário | 52,6 Nm às 6000 rpm |
Embraiagem | Multidisco em banho de óleo |
Final | Por corrente |
Caixa | Cinco relações |
Arranque | Elétrico |
Quadro | Berço, semi-duplo |
Suspensão dianteira | Forquilha telescópica de 41 mm |
Suspensão traseira | Monoamortecedor tipo Prolink |
Travão dianteiro | Um disco de 276, pinça dois pistões |
Travão traseiro | Um disco de 240, pinça de um pistão |
Pneu dianteiro | 90/90-21 |
Pneu traseiro | 130/80-17 |
Comprimento total | 2260 mm |
Largura total | 865 mm |
Altura total | 1310 mm |
Distância entre eixos | 1505 mm |
Altura do assento | 850 mm |
Peso | 202 Kg (a cheio) |
Depósito | 18 litros |
Cores | Padrões variáveis ao longo dos anos |
Importador | Honda |
PVP | 1150 contos em 1993 (cerca de 5750€) |