Nota Introdutória:
Como previsto, a semana passada abordámos a segunda moto das 750 cc, a ZXR 750, e prometemos que não íamos ficar por aqui. É uma cilindrada muito apelativa. Motores mais cheios e redondos que por exemplo as 600 cc e não tão potentes e exigentes como as 900 e ainda mais as 1000 cc. No caso da Moto Guzzi é ainda mais importante porque esta cilindrada era algo marcante para o fabricante italiano, sendo que a 750S representa a última versão antes do lançamento de um novo modelo com mais cilindrada. Na prática, é o canto do cisne da marca transalpina nas 750.
Naturalmente que não vamos deixar escapar a oportunidade de abordar o fabricante de motos italiano mais antigo de todos e ainda em plena atividade, sendo que já é centenária. Prepararem-se, sobretudo os que não conhecem nada da história da Moto Guzzi, porque o seu historial é riquíssimo e ajuda a perceber porque é ainda hoje uma marca tão marcante, caraterizada por motos com uma filosofia e posicionamento específicos no mercado, atualmente bem longe da massificação de outras marcas e continuando a apostar muito na produção artesanal.
Tudo começou a 15 de março de 1921, com o registo da empresa” “Società Anonima Moto Guzzi”, em Corso Aurelio Saffi, Génova, para “a produção e venda de motociclos, e todas as demais atividades pertinentes ou relacionadas com a indústria de metalurgia e engenharia mecânica”. Os sócios da Companhia eram o armador genovês Emanuele Vittorio Parodi, o filho Giorgio e o seu amigo Carlo Guzzi, que tinha sido colega de Parodi no Corpo Aéreo de Itália.
Tinham um amigo comum, também piloto de aviação, de nome Giovanni Ravelli, que faleceu em 11 de agosto de 1919, num voo de testes. Foi a sua trágica morte que lhes deu a ideia de homenagear o amigo com o símbolo da águia de asas abertas para logo da Moto Guzzi, que ainda hoje perdura e que o modelo eleito desta crónica mostra orgulhosamente, a célebre Águia de Mandello del Lario.
A primeira moto que lançaram no mercado era já um produto bastante maduro e avançado para a época. Chamaram-lhe 8 HP Normale (em referência ao número de cv que conseguia debitar logo às 3.200 rpm) e tinha uma cilindrada de 498 cc, um motor monocilíndrico a 4 tempos e cujo protótipo já vinha sendo desenvolvido há 2 anos. Possuía uma caixa de 3 velocidades e era capaz de atingir cerca de 85 km/h, o que era francamente interessante!
A base era já tão avançada que logo em 1921 começaram a competir e com excelentes resultados! A vitória na prestigiada Targa Florio, foi o ponto de partida para, nos anos e décadas seguintes, a marca criar um adn intimamente ligado à competição, com um palmarés invejável e uma reputação que se foi cada vez mais afirmando, sendo obrigatório destacar um nome que ficou para a história da marca: Giulio Cesare Carcano.
Este verdadeiro “mago das duas rodas”, sobre o qual voltaremos a falar nesta crónica, teve um papel determinante no sucesso e afirmação da marca, em especial na competição. As suas criações eram geniais e foram apontando o caminho para o sucesso da Moto Guzzi desde a década de 30 até aos anos 60, embora a Segunda Guerra Mundial, como já vimos com outras marcas, tenha mudado bastante os planos à marca, mas a mesma acabou por saber reinventar-se.
Um bom exemplo foi o lançamento da Guzzino 65. Lançada logo após o fim da guerra, na primavera de 1946, e comercializada durante quase 10 anos, ajudou muito ao sucesso da marca e à mobilidade das pessoas em Itália e não só. Era leve (com apenas 45 kg), fiável e foi um sucesso tremendo na europa durante mais de uma década. Um verdadeiro best-seller e vendido a um preço low-cost! Foram produzidas, no total, mais de 71.000 unidades!
A própria sucessora, a Cardellino, baseava-se nela e foi novamente um sucesso, apostando num veículo acessível, robusto e, como não podia deixar de ser, também com genes de competição, nomeadamente na categoria de 75cc onde fez furor e colecionou muitas vitórias e recordes.
Na segunda metade da década de 60 a Moto Guzzi apresentou o motor 90° V-twin em posição transversal e que se tornaria o seu símbolo e que se tornou intemporal. Este motor, cuja arquitetura continua a ser usada, foi usado como base para modelos como a Guzzi V7, a V7 Special, a Guzzi V7 Sport ou a eleita desta crónica, a espetacular 750S.
Diria que este motor está para a marca como o Boxer está para a rival BMW, mas com a particularidade de a Moto Guzzi, mesmo na atualidade, o usar em todos os seus modelos, enquanto o construtor germânico adota muitas outras arquiteturas de motor.
Na década de 70 e 80 a marca “sofre” os efeitos da crise, da concorrência do automóvel, da feroz armada nipónica e passa por sérias dificuldades, sendo que a sua sobrevivência se deve, por exemplo, a encomendas específicas dos Estados Unidos (para equipar a respetiva polícia) ou italianas, em condições similares e até a produzir tricarros (que já construía antes) ou máquinas agrícolas.
No final do milénio passado as coisas não correm muito melhor (a fase negra da gestão De Tomaso) e a marca acaba por ser adquirida pela Aprilia (consta que esteve para ser a KTM) e torna-se parte do grupo detido por Ivano Beggio, de quem já falámos aquando da apresentação da Pegaso 650. Também aqui as coisas não correm bem e, em 2004, ambas as marcas são integradas no universo Piaggio, mas essa história já nos transcende. Vamos agora focar-nos na escolhida da semana!
N.º 28: Moto Guzzi 750S
Como já vimos antes, o novo motor com a arquitetura de 90° em V começou a ser aplicado ainda na década de 60 com uma cilindrada de 703 cc e em vários modelos, caso da Ambassador, depois a California ou a V7, mas era preciso algo mais para fazer frente à concorrência e um aumento de cilindrada era inevitável, até porque as motos japonesas estavam a chegar e já não bastava fazer frente às inglesas ou alemãs.
Com Lino Tonti a cilindrada aumenta para 748 cc, a potência chega aos 52 cv e surgem várias alterações mecânicas de vulto, incluindo um controlo férreo no peso para não ir além dos 200 kg a seco. O resultado não desilude, muito pelo contrário: a moto é agora capaz de atingir os 200 km/h, apoiada numa moderna caixa de 5 velocidades, uma estética atraente e num bom comportamento dinâmico! Está aberto o caminho para o sucesso! A concorrência que se cuide! A V7 Sport é uma verdadeira moto quase de competição e que todos podem comprar!
Ainda antes de uma nova (inevitável) subida de cilindrada para fazer frente às poderosas japonesas que estão agora a chegar e em força, a marca lança a sua 750S. A derradeira 750 e a que melhor encarna o espírito de competição e inconformismo da marca, uma pura cafe-racer, sempre pronta a aceitar os desafios da concorrência e a lutar por uma posição de destaque.
Este espetacular exemplar do ano da nossa Revolução (a comercialização começou no ano anterior e durou apenas 3 anos), nacional, já foi alvo de um restauro há 9 anos e é fascinante, tendo menos de 59.000 km. Tenho que fazer um especial agradecimento ao Luís pela disponibilidade e simpatia, além de ser o felizardo proprietário de uma moto quase intemporal e que, mesmo agora, faz bater o coração mais forte a muita gente, mesmo estando parada.
O seu visual é marcante, a escolha do padrão de cores preto, listas em vermelho (também há em laranja e verde) e branco é radiosa e os acabamentos são soberbos, uma verdadeira delícia. Dela fazem parte também os espetaculares escapes do especialista, desde sempre ligado à marca, Lafranconi, modelo Competizione, as vastas superfícies cromadas, o duplo quadro em preto ou as jantes raiadas. Uma pura clássica.
Face às versões mais civilizadas, esta S tem alguns detalhes deliciosos e há 2 que saltam à vista e a tornam muito especial: o duplo de travão de disco à frente (todas as anteriores eram de tambor) e o selim mais curto, com genes de competição e a convidar a uma condução mais radical, egoísta e a solo.
Ouvir o coração desta águia é um regalo e mesmo a sua condução um prazer, sobretudo se pensarmos que temos perante nós uma joia mecânica com quase 50 anos de vida! A posição de condução é algo radical e baixa, com o peso muito projetado para a frente, em posição de ataque. A vibração que o motor emana é, talvez exagerada para alguns, mas na medida certa para outros, mas o melhor é conduzir para se poder avaliar. Atenção à posição muito proeminente dos cilindros e ao calor que emanam.
A embraiagem é dura, tal como a caixa, mas funcionam e depois o comportamento do motor é agradável, com muito binário logo em baixas (máximo de 54 nm às 5.500 rpm) e os cerca de 62 cv estão todos disponíveis às 7.250 rpm (a zona vermelha começa logo a seguir), mas por volta das 5.000 o motor já se sente bastante cheio. A moto anda francamente bem, apesar das limitações, nomeadamente dos travões, ainda que sendo de duplo disco à frente e de 280 mm, até porque, com o depósito cheio (cerca de 22 litros) não é fácil fazer parar os mais de 225 kg.
Claro que, em potência pura, não podia fazer frente a uma poderosa CB 750 Four e, menos ainda, a uma Kawasaki Z 900. Porém, a curvar e em estradas mais sinuosas a situação altera-se bastante! Afinal de contas, a Moto Guzzi já produzia motos e estava envolvida na competição bem antes destas suas concorrentes e sabia bem o que andava a fazer!
Felizmente que no início da década de 70 o “padrão japonês” já se estava a impor: travão de trás à direita e pedal das mudanças à esquerda e esta 750S já é assim, mas a caixa de velocidades ainda é invertida: ou seja, 1.ª para cima e as restantes para baixo, como é comum na competição! Só custa no início e depois habituamo-nos depressa!
Por falar em depressa com esta moto é possível, mas um sério risco, até porque é uma moto algo rara e que deve ser tratada com carinho e cuidado, não se vá dar o caso de pregar sustos, algo que pode acontecer, por exemplo, numa redução em que a transmissão por veio e cardã nos pode colocar em apuros, quando menos se espera!
Além disso, há outro elemento que exige muita atenção. Os pneus! Vem equipada à frente com medida 3.25 H18 e atrás com 3.50 H18. Uma miséria para os padrões atuais, mais parecendo pneus de bicicleta, sendo que a condução em chuva deve exigir muitos cuidados e assumo que não tenho curiosidade em experimentar.
Por outro lado, como é costume, a tradição italiana de partes elétricas algo caprichosas ou de ferrugem que surge mais depressa que o desejável também aqui era prática comum, mas o motor, incluindo o sistema de transmissão por veio e cardã e a embraiagem costuma ser bastante robusto, embora tenha sido ainda melhorado depois com a vinda da V7 850 California.
Resumindo, esta 750 S é uma moto realmente muito especial e até valiosa, mais ainda no excelente estado em que se encontra! Tem um historial de sucesso por trás, incluindo ao nível da competição e, enquanto pura cafe-racer o seu número de admiradores é enorme também fora de Itália, por exemplo nos Estados Unidos, na Alemanha ou em Portugal!
A própria marca reconheceu isso ao (re)lançar há poucos anos a designação V7, com muito sucesso, tendo por base o motor em V de 90 graus transversal, que continua a ser a imagem de marca da Moto Guzzi, apesar das cada vez mais restritivas normais ambientais. Destaque ainda para o facto de a marca manter até agora a refrigeração por ar, mas isso acaba de mudar com a V100 Mandello. Por exemplo o boxer da BMW já adotou a refrigeração líquida há uma boa dezena de anos!
Moto Guzzi: uma marca centenária muito especial, cuja celebração se comemora em 2022!
É verdade! Por causa da pandemia só este ano se celebrou a comemoração do centenário da marca, obviamente que em Mandello del Lario, na província de Lecco, em Itália.
O “pequeno” fabricante italiano, quase artesanal, sempre revelou um grande inconformismo e uma veia criadora, sabendo ser fiel a si próprio e resistindo à tentação de se massificar ou procurar soluções mais simples e óbvias. O próprio facto de ainda hoje continuar a produzir motos sempre no mesmo local, Mandello del Lario, próximo das margens do Lago di Como dá-lhe um cariz especial.
Outra dimensão interessante da marca tem a ver com os nomes escolhidos para os seus modelos. Vários são os com nomes de cidades, estados, regiões… e o resultado é brilhante: Norge, California, Le Mans, Bellagio, Breva, Griso, Nevada, Stelvio… permitem uma rápida associação entre o modelo da moto e o local em causa, algo que a marca pode e deve manter.
Outra dimensão muito especial da marca são algumas das suas invenções mais criativas e aqui tenho que destacar Giulio Cesare Carcano. O brilhante engenheiro italiano que nos deixou em 2010 com a bonita idade de 95 anos e tem um lugar na história da marca e de Itália.
É graças a ele que a marca criou o primeiro túnel de vento destinado a motos! Uma invenção incrível, logo em 1950, quando as outras marcas nem sequer sonhavam com essa possibilidade! Foi um verdadeiro visionário e só essa ideia já chegava para o imortalizar, mas há mais!
Outro seu projeto inacreditável na década de 50 e que ficou para a história foi a extraordinária Moto Guzzi 8 cilindros (sim, leram bem) de 500 cc, em V, a 90 graus, ciclo 4 tempos e destinada à competição nessa categoria. Tinha uma potência impressionante de 75 cv e, mais ainda, era capaz de uma velocidade de ponta 275 km/h!
Esteve ainda na génese da V7, mas com a morte de Guzzi deixou as motos e dedicou-se em pleno a outra das suas paixões: a vela! Uma vez mais os resultados foram geniais, fruto do criativo e inquieto criador.
Destaque ainda para outro engenheiro da marca: Lino Tonti que ficou para a história como “o homem dos quadros”, ou seja, foi fruto do seu génio que foram criados, durante décadas, os quadros para albergar motores e demais periféricos das Moto Guzzi, na competição e fora dela. Mesmo na atualidade os quadros da marca ainda usam muito da estrutura do genial Tonti que nos deixou em 2002, com a idade de 81 anos.
Termino com mais uma inovação da marca: a travagem combinada! Ficou conhecido quando a Honda lançou no mercado o seu sistema CBS (Combined Braking System) com a GL 1100 de 1983 (havemos de falar dela, mais à frente), depois popularizado pela sua CBR 1000. Porém, a verdade é que o sistema começou a ser comercializado logo em 1975 na Moto Guzzi 850 T3 como forma de reduzir as distâncias de travagem! Já agora, o T significava Turismo e o 3 dizia respeito ao facto de estar equipada com 3 discos de travão, neste caso da Brembo.
Como vai sendo habitual, as principais fontes de informação são em outras línguas, mas a informação vai existindo, pelo que se deixam alguns pontos de pesquisa.
Cycleworld: história detalhada da marca, com muitas imagens
Misfitemade: análise do modelo, com detalhe e muitas fotos;
Guzzisti.de: ainda que em alemão, tem muita informação sobre toda a marca;
Ride70s: site especializado em motos da época. Muita informação sobre o modelo;
Madeinitaly: site especializado em motos italianos. Grande riqueza de imagens;
Guzzifan.com: destinado aos fãs da marca. Uma verdadeira bíblia.
Para o próximo número vamos continuar por esta cilindrada. Regressamos de malas aviadas ao Japão. Espera-nos uma moto muito popular, aventureira como poucas e que a marca relançou há pouco anos com inegável sucesso. Até sexta-feira!
Texto: Pedro Pereira